3.1 - Desenvolvimento tecnológico e novas perspectivas com o CFHT e o ESO

O desenvolvimento tecnológico já faz parte da realidade do LNA desde quando ainda era projeto, considerando-se que a própria astrofísica depende de equipamentos cada vez mais sofisticados para analisar a luz capturada pelos telescópios. Como vimos, o marco inicial dessa trajetória foi o esforço de uma geração de astrônomos ao longo de duas décadas para instalar um telescópio de grande porte no Brasil. Essa empreitada da astronomia brasileira demandou a formação de pessoal especializado não só em astrofísica propriamente, mas também em instrumentação óptica, incluindo atividades tecno-científicas que jamais se havia feito no país.

Ao longo dos anos 1960 e 70, algum desenvolvimento instrumental já era realizado com vistas ao Observatório Astrofísico Brasileiro, seja na construção de fotômetros, como os já mencionados de Germano Quast ou Jair Barroso, seja na avaliação técnica e comparativa dos fabricantes de telescópios (além da Perkin Elmer, cogitaram-se a Reosc e a Zeiss), seja na própria configuração desse telescópio, cujo bom resultado se deveu a estudos e discussões em grupo sobre as especificações, algumas visitas a fábricas e observatórios nos EUA e na Europa, sobretudo de Germano Quast e Muniz Barreto, e também a um bocado de sorte, já que este era um trabalho pioneiro. Além do telescópio com focos cassegrain e coudé, o planejamento geral do OAB (Silva, 1979, p. 24) previa a instalação de um espectrógrafo coudé, um espectrógrafo cassegrain e dois fotômetros rápidos. Tudo isso representava um grande aporte tecnológico para a ciência brasileira.
 
Nos anos 1980, apesar da instabilidade institucional, o LNA estabeleceu-se com sucesso, vindo a ser fundamental para o crescimento que se verificou na astronomia no Brasil desde então. Na sua estrutura, já na época da Divisão OAB, incluíam-se áreas notadamente tecnológicas, como o Setor de Engenharia, que incluía o Laboratório de Eletro-eletrônica, a Oficina Mecânica e o Laboratório de Óptica. Como já vimos anteriormente em outras postagens, houve algumas mudanças na organização da instituição, e essas áreas passaram a fazer parte do Departamento Técnico do LNA em 1990, renomeado como Departamento de Tecnologia em 1993, que virou Coordenação de Tecnologia em 2000. Há poucos anos, com a nova estruturação do LNA, que passou a ter o organograma a seguir, essas áreas enquadraram-se na Coordenação de Engenharia e Desenvolvimento de Projetos (CEDP).



Independentemente da denominação – Setor de Engenharia, Departamento Técnico, Departamento de Tecnologia, Coordenação de Tecnologia ou Coordenação de Engenharia e Desenvolvimento de Projetos –, estiveram e estão sob sua responsabilidade, amiúde em parceria com outras instituições, as atividades de desenvolvimento instrumental e dos periféricos necessários para o LNA cumprir a sua missão, que, a partir da última década, passou a enfatizar o viés tecnológico.


Espectrógrafo de fibras ópticas SIFS, enviado para o Telescópio SOAR.
Os consórcios internacionais firmados nos anos 1990 decerto estimularam ainda mais essa vocação, tendo em vista que os próprios contratos já previam a colaboração brasileira no projeto e construção de instrumentação científica, além da atividade gestora do LNA. Com a tecnologia de ponta usada no Gemini e no SOAR, o Brasil pôde juntar-se ao seleto grupo de países capazes de produzir equipamentos astronômicos de primeira linha. Na última década, por exemplo, destacam-se o projeto e a construção dos seguintes espectrógrafos pelo LNA: Eukaliptus e ECHARPE para o OPD, SIFS e STELES para o SOAR, WFMOS para o Gemini (cancelado em 2009); FRODOSpec para a Universidade de Liverpool.

Esse último, entregue em 2009, é o único projeto que não se destinava a um observatório gerenciado pelo LNA, que teve que participar de uma licitação internacional. Apesar de bem-sucedida, essa iniciativa de inserção no mercado internacional de instrumentação astronômica não pôde se repetir “por absoluta falta de disponibilidade de pessoal e infraestrutura ociosa, devido aos demais projetos em andamento relacionados aos telescópios sob responsabilidade do LNA” (Bruch, 2010, p. 11). A propósito, os recursos humanos continuam sendo um problema para o LNA, que mantém seu quadro de pessoal praticamente o mesmo desde 2002, como se vê no gráfico abaixo (Bruch, 2010, p. 4):



Com essa perspectiva tecnológica, em 2006 foi inaugurado o prédio anexo da sede em Itajubá para a instalação de laboratórios e oficinas com aparelhagem moderna: “o LNA equipou seus laboratórios de Metrologia Ótica, Fibras Óticas, Caracterização Ótica, Metrologia Mecânica, Oficina Mecânica de Precisão e Laboratório de Controle e Automação com equipamentos de última geração” (LNA, 2010, p. 11). Ademais, a criação do LABO (Laboratório Óptico) é deveras relevante, tendo em vista a sua especialização no manuseio de fibras ópticas para uso em instrumentação astronômica. Esse investimento permite ao LNA “participar da construção de instrumentos para os telescópios internacionais e competir em termos de igualdade com outros centros de desenvolvimento instrumental na área astronômica mundial” (LNA, 2010, p. 10).

Sobre o desenvolvimento tecnológico e a participação em projetos internacionais, o Plano Diretor 2011-2015 (LNA, 2010, p. 9) diz o seguinte:

"Embora o LNA sempre tivesse atuado na área tecnológica por meio do desenvolvimento instrumental para o OPD, muitas vezes em colaboração com outras instituições da comunidade astronômica, nasceu a convicção de que, para o pleno aproveitamento da participação brasileira nos projetos internacionais, o país não deveria se limitar apenas aos dados científicos provindos dos mesmos como retorno dos altos investimentos realizados, mas deveria participar ativamente no desenvolvimento tecnológico desses grandes observatórios através da concepção e construção de instrumentos periféricos modernos e competitivos."

Esse movimento de adesão a consórcios internacionais ganhou mais um elemento em 2008, o CFHT (Canada-France-Hawaii Telescope), que se encontra ao lado do Gemini Norte no Havaí, aumentando a oferta de telescópios modernos e de grande porte à comunidade astronômica brasileira. Com uma abertura de 3,6m, o CFHT já está em funcionamento desde 1979, possui ótima qualidade de imagem e complementa a demanda nacional. Por enquanto, o acordo garante de 5 a 10 noites por semestre. O papel do LNA, como no Gemini e no SOAR, é executar esse acordo, planejando e coordenando a participação dos astrônomos brasileiros no CFHT, e operando a infraestrutura local para levar isso a cabo. Vale lembrar que o contrato prevê também a participação brasileira no desenvolvimento instrumental. (35)

CFHT
Essa diversidade de empreendimentos internacionais produziu a necessidade de uma política de Estado, um planejamento mais geral para evitar que atividades descoordenadas prejudicassem o investimento que a sociedade faz em ciência. “Isso vale para a astronomia tanto quanto para qualquer outro ramo científico; no Brasil e em outros países.” (CEA, 2010, p. 9). Tendo isso em vista, o MCT estabeleceu a Comissão Especial de Astronomia (CEA) para elaborar um Plano Nacional de Astronomia (PNA) que descrevesse a situação atual da astronomia brasileira num contexto global e fizesse recomendações estratégicas. Isso foi feito num documento de 80 páginas, publicado em outubro de 2010 depois de muito debate na comunidade astronômica. Além de representantes do ministério e das suas unidades de pesquisa em astronomia, essa comissão formou-se com membros da comunidade científica indicados pela SAB, pela ABC, pela CAPES e pelo CNPq.

O LNA participou ativamente desse processo, ao mesmo tempo que elaborava seu Plano Diretor, o que era problemático, tendo em vista que as recomendações do PNA poderiam afetar diretamente a instituição. No entanto, como houve uma versão preliminar do PNA e o próprio LNA participou da sua redação final, os problemas foram superados (LNA, 2010, p. 11-12). Das sete recomendações do PNA, todas afetam o LNA, direta ou indiretamente, já que dizem respeito à: 1) inserção internacional; 2) instrumentação astronômica; 3) divulgação científica; 4) educação científica; 5) formação em astronomia; 6) priorização e financiamento de projetos; e 7) criação de um mecanismo permanente de gestão do PNA, a Comissão Nacional de Astronomia (CNA). Vejamos em pormenor as duas primeiras.

A questão da instrumentação astronômica, especificamente, é tratada no capítulo 5 desse documento, “O potencial da astronomia para o desenvolvimento tecnológico do Brasil”, citando alguns dos projetos instrumentais do LNA já mencionados aqui. Segundo seus signatários, “investimentos feitos para criar capacidades e uma cultura para o desenvolvimento tecnológico aplicado em ciência, p. ex., na construção de instrumentação científica, geram retorno para o país muito além da área originalmente beneficiada” (CEA, 2010, p. 43). Com isso se percebe que, além do aporte técnico-científico para a astronomia, a Comissão leva em conta também que esse desenvolvimento tecnológico agrega valor à indústria nacional, abrindo novos mercados e formando pessoal especializado em áreas estratégicas:

Enquanto os investimentos em instrumentação astronômica nunca terão um impacto expressivo no PIB, o desenvolvimento tecnológico na área tem um alto potencial inovador e um elevado valor agregado, contribuindo para o desenvolvimento tecnológico e de software do país em um nível muito acima do seu valor monetário. Além do desenvolvimento tecnológico e possível abertura de novos mercados para a indústria nacional, é importante mencionar a formação de pessoal especializado em áreas estratégicas como eletrônica, mecânica de precisão e óptica, software, entre outras. Esses profissionais formados e treinados em instrumentação científica podem ser absorvidos pelas empresas nacionais em projetos de desenvolvimento, e também criar novas indústrias de tecnologia, agindo, desta forma, como catalisadores para o progresso tecnológico do país. (CEA, 2010, p. 44).

No entanto há grandes limitações nesse ramo de atividade, sobretudo no que tange à mão de obra especializada e articulação com a indústria. Nesse sentido, o PNA identifica o potencial dessa área e propõe soluções e recomendações específicas.

Quanto à inserção internacional, chama a atenção o destaque dado à associação do Brasil ao European Southern Observatory (ESO). Além de um anexo, “Vantagens para a indústria brasileira da entrada do Brasil no ESO”, esse tema permeou todo o documento, tendo em vista que atende à demanda de boa parte da comunidade astronômica brasileira. Essa demanda por uma continuada participação na vanguarda da astronomia mundial significa não apenas inovação científica, mas também desenvolvimento tecnológico. Sem isso, “inevitável e rapidamente [o Brasil] perderá o espaço já alcançado e não poderá exercer um papel significativo no cenário mundial do futuro” (CEA, 2010, p. 73). Mas, afinal, o que é o ESO?

O European Southern Observatory (ESO) é uma bem-sucedida organização intergovernamental com sede na Alemanha, fundada em 1962, que opera instalações astronômicas assaz produtivas e fornece infraestrutura observacional de última geração para os astrônomos dos países que participam dessa empreitada. Seu orçamento é alto, aproximadamente 135 milhões de euros, conta com 700 empregados e representa oportunidade de desenvolvimento tecnológico para os países membros. Tudo isso para dar conta de construir e operar os mais potentes telescópios terrestres do mundo, sem falar a sua parceria com a Agência Espacial Europeia na coordenação da operação do telescópio espacial Hubble.

O ESO conta hoje com 16 telescópios ópticos de aberturas variadas – dentre eles o conjunto VLT (Very Large Telescope) de quatro telescópios de 8,2m – e um radiotelescópio milimétrico-submilimétrico de 12m APEX (Alma Pathfinder Experiment), todos localizados nos três observatórios no Chile – Cerro La Silla, Cerro Paranal e Chajnantor – onde atualmente também se instala o ALMA (Atacama Large Millimiter-submillimiter Array), um radiointerferômetro com 66 antenas, e se pretende instalar o telescópio gigante E-ELT (European Extremely Large Telescope), de 42m. Além disso, há o projeto do TMT (Thirty Meter Telescope), a ser instalado no Havaí.

Em dezembro de 2010, o Brasil assinou o Acordo de Adesão ao ESO, tornando-se o 15º país membro dessa estrutura, o primeiro não europeu. Esse acordo ainda aguarda aprovação pelo Congresso Nacional, como noticiou o jornal O Globo de 5 de setembro de 2011, na matéria “Supertelescópio do ESO deve movimentar empresas e pesquisadores brasileiros”, mas o Brasil já participa das chamadas de projetos com status de membro, como noticiou no mesmo dia a Folha de São Paulo na matéria “Brasil tem bom desempenho em ‘licitação’ de telescópios europeus”. A questão, já exposta pelo PNA (CEA, 2010, p. 4, 73), é “se há ou não condições financeiras econômica e socialmente aceitáveis para tal adesão, considerando também o grande retorno científico, tecnológico e econômico que dela adviriam”.

Pelo que se pode depreender do PNA, após uma análise dos investimentos preliminares (estipulados em 130 milhões de euros como taxa de acesso, sendo que 50% poderia ser pago em construções e serviços afins feitos por empresas brasileiras, não representando saída de divisa) e periódicos (proporcionais ao PIB médio num período de três anos), a resposta da CEA a essa questão é positiva, sobretudo considerando que o Brasil também poderia participar das concorrências de contratos industriais, no que levaria vantagem por já ter empresas implantadas no Chile. Isso significa, segundo os números apresentados pelo PNA, um potencial de retorno de 75% dos investimentos e um aporte inquestionável em C,T&I: “A participação de empresas brasileiras nas atividades industriais do ESO deverá criar um impacto econômico positivo nas cadeias econômicas produtivas primárias e secundárias de alta tecnologia, agregando valores, inovação e conhecimento ao setor produtivo nacional.” (CEA, 2010, p. 76).

Mas há vozes dissidentes. João Steiner, por exemplo, professor titular do IAG, coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Astrofísica e diretor do LNA de 1997 a 1999, acredita que o Congresso Nacional não aprovará esse projeto porque o Brasil não tem dinheiro para entrar como membro do ESO, que só participaria mesmo na construção civil e que, ao fim e ao cabo, estaria financiando a ciência europeia (Steiner, 2011).

Por outro lado, Albert Bruch, diretor do LNA de 2001 a 2011, que ao longo dos últimos dois anos tem se dedicado com afinco à gestão da astronomia no Brasil, sendo um dos membros da CEA, acredita que, independentemente da função do LNA nesse processo, a entrada no ESO, além de ser viável economicamente, permitiria o desenvolvimento da ciência brasileira: “Nós não somos um país que só pode contribuir com, digamos, obras civis para a construção desse telescópio, mas também com alta tecnologia.” (Bruch, 2011). E já que mencionamos o papel do LNA nesse empreendimento, vejamos alguns cenários possíveis.

Segundo o Plano Diretor 2011-2015, além de oportunidades, há também algumas ameaças com a entrada do Brasil no ESO, mas em primeiro lugar está sempre “o bem superior, a dizer, o bem-estar da astronomia brasileira a qual o LNA serve” (LNA, 2010, p. 12). As oportunidades dizem respeito sobretudo aos projetos instrumentais, e as ameaças, à “obsolescência da infraestrutura observacional gerenciada pelo LNA atualmente” (ibid.), tanto o OPD, quando o Gemini e o SOAR. Além disso, ao contrário dos outros consórcios internacionais, o ESO não trabalha com escritórios nacionais nos países membro. No entanto, caso não haja associação formal, o Brasil poderá tornar-se “parceiro em um dos projetos de telescópios gigantes [...], o LNA poderá ficar encarregado do gerenciamento do projeto por parte do Brasil” (ibid.), como já faz nos outros consórcios internacionais. Nas palavras de Albert Bruch (2011):

"Podemos imaginar vários cenários. Primeiro: o Gemini, por exemplo, tem a figura dos escritórios nacionais, cada parceiro tem um escritório que cuida dos assuntos no país, o LNA faz [isso]. O ESO não tem essa figura, inclusive estão gerenciando tudo de forma central, mas eu vejo um certo papel para o LNA, pelo menos nos anos iniciais da participação do Brasil no ESO, para incentivar a inserção real da comunidade científica no ESO. Também precisamos de uma instituição que cuide da relação da indústria nacional com o ESO. [...] Esta é uma das possíveis consequências. A segunda consequência é que a gente pode participar na instrumentação do ESO. Esta é uma boa possibilidade, uma oportunidade muito real, de fato já colaboramos em projetos preliminares de instrumentação [...], isso já acontece. Mas também tem um outro cenário que é: a participação no ESO, uma organização tão grande, torna supérflua uma futura participação no Gemini, torna supérflua a operação do OPD, torna supérfluo o LNA."

(35) Cf. contrato do CFHT.

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