2.2 - Cooperação internacional: consórcios Gemini e SOAR

Antes da autonomia do LNA, em 1986 já começava a demanda por um novo telescópio para a astronomia brasileira. Nessa época, além dos dois telescópios – o Perkin Elmer de 1,60m e o Zeiss de 60cm –, o LNA contava com um fotômetro Texas monocanal, um fotômetro rápido, uma câmara fotográfica, um espectrógrafo coudé, um espectrógrafo cassegrain, um detector multicanal OMA III, uma câmara CCD e um tubo de imagem amplificado para placas diretas.

Em agosto desse mesmo ano houve uma reunião em Itajubá convocada pela SAB, na qual os “astrônomos óticos brasileiros” trataram da “saturação dos tempos de telescópio” disponíveis naquele momento, concluindo que era necessário construir ou adquirir “um novo telescópio de médio porte”. Nessa reunião, eles redigiram uma carta ao ministro Renato Archer (MCT) solicitando uma “política de investimentos na área” e informando que a comunidade chegara ao consenso de que “desde já sejam iniciados estudos para a implantação de um telescópio ótico de grande porte, compatível com o atual desenvolvimento da astronomia nacional”. Assinaram esse documento vários astrônomos de diversas instituições: Freitas Pacheco, Janot Pacheco, Ronaldo de Souza, Oscar Matsuura e Antonio Magalhães, do IAG; Lício da Silva, Sayd Codina, Roberto Martins, Jorge de la Reza e Paulo Pellegrini, do ON; Kepler de Oliveira, da UFRGS; Renato las Casas e Rodrigo Társia, da UFMG; Jair Barroso, Germano Quast e Carlos Alberto Torres, do LNA; e Francisco Jablonski, Ivo Busko, Clemens Gneiding e João Steiner, do INPE. Novamente convocados pela SAB, eles se reuniram em novembro para analisar projetos de telescópios. Decidiram pela aquisição de um instrumento de 3m de diâmetro, a ser instalado num bom sítio na América do Sul, com custo de cerca de 3 milhões de dólares, para o qual solicitariam financiamento da FINEP. Nessa reunião formaram também uma comissão de seis astrônomos de instituições diferentes, sob coordenação de Kepler de Oliveira. (29)

Indo mais além na questão da aquisição de um novo telescópio, o editorial do Boletim da SAB de janeiro de 1988 dizia que a “instalação do telescópio de 1,60m no Laboratório Nacional de Astrofísica teve um impacto importante no cotidiano de nossa produção científica e na experiência de gerenciamento de um laboratório desse porte”. No entanto dizia também que o tempo do telescópio do LNA já era insuficiente; que, naquele momento, a comunidade precisava de um outro telescópio de 2 a 3m; e que, para a década seguinte, precisaria de um de 4m. Como alternativa, sugere “a construção de um telescópio de grande porte em cooperação com centros estrangeiros. Os custos não seriam muito elevados e os ganhos tecnológicos incalculáveis.” No fim desse mesmo ano, já se falava em instalá-lo na Cordilheira dos Andes, e que contatos iniciais já haviam sido feitos “com o Observatório de Cerro Tololo, operado por um consórcio de universidades americanas, que se dispõe a aceitar a instalação de um instrumento brasileiro” (SAB, 1988, p. 26-7). Mas havia dificuldades também, tendo em vista o período de transição pelo qual o Brasil e suas instituições estavam passando.

Ao longo dos anos 1990, o LNA firmou-se como laboratório nacional em sua missão de fornecer os meios instrumentais de grande porte para as pesquisas em astronomia. As instituições brasileiras viviam um processo de estabilização política e econômica, ao mesmo tempo que soluções multi-institucionais eram cada vez mais frequentes na astronomia internacional. É nesse contexto que, atendendo às demandas internas por um novo telescópio, o Brasil aderiu ao consórcio Gemini em 1993 e ao SOAR em 1998, tendo o LNA como intermediário. Segundo João Steiner (2011), diretor do LNA de 1997 a 1999, foi o investimento concentrado para uso descentralizado que viabilizou a entrada do Brasil nos consórcios Gemini e SOAR.

Em 1993, quando foi assinado o contrato com o Gemini, a pujança da astronomia brasileira, que se devia em grande parte ao LNA, refletiu-se no número de trabalhos apresentados na reunião anual da Sociedade Astronômica Brasileira: 200. Esse número é bastante representativo, sobretudo se comparado, por exemplo, com o de 1985: 44 trabalhos. Em menos de dez anos, o número de trabalhos apresentados quase quintuplicou. Este é só um indicador. Outros são o aumento do número de instituições, teses e doutores (Maciel, 2004).

A adesão do Brasil ao Projeto Gemini começou a ser gestada numa reunião do Centro Técnico-Científico (CTC) do LNA em setembro de 1992, quando a conselheira Miriani Pastoriza, da UFRGS, propôs que a comunidade aproveitasse a missão e estrutura do LNA para apresentar ao governo brasileiro o interesse de associação ao Gemini. Carlos Alberto Torres, então diretor do LNA, fez os contatos necessários para obter mais informações sobre o projeto, cuja adesão foi aprovada unanimemente pela comunidade astronômica brasileira. Embora a manifestação de interesse do Brasil devesse ser oficializada até o fim do ano e o país vivesse tempos turbulentos, em menos de três meses, depois de conseguir agilizar os trâmites no CNPq e no MCT, Torres já aguardava a resposta da direção do Gemini.

Gemini


O Gemini é um consórcio internacional para a construção e operação de dois telescópios de 8m idênticos, um no Chile e outro no Havaí. Além dos telescópios, o projeto conta com uma instrumentação auxiliar de vanguarda, como imageadores e espectrógrafos de alta resolução, distribuída pelas “comunidades científicas dos países membros por avaliação de mérito” (Torres, 1993, p. 14). Desse consórcio participavam inicialmente os EUA (National Science Foundation – NSF) com cerca de 50% das cotas, o Reino Unido (Particle Physics and Astronomy Research Council – PPARC) com 25%, o Canadá (National Research Council) com 15%, e o Chile (Comisión Nacional de Investigación Científica y Tecnológica) com 5%.
A ideia inicial era que Brasil (Ministério de Ciência e Tecnologia – MCT) e Argentina (Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas – CONICET) dividissem, no melhor espírito do Mercosul, uma cota de cerca de 5%, que foi mais ou menos o que aconteceu, havendo também uma pequena redistribuição das cotas devido à entrada da Austrália. Além do enorme impacto que esse projeto teria em nossa astronomia, Torres (1993, p. 15) destacava: “O custo é relativamente baixo e o potencial imenso. Com esse projeto a astronomia óptica do Brasil entra no século XXI.” Os números exatos eram os seguintes:

a) Gemini Norte:

NSF (incluindo a Universidade do Havaí): 51,60%
PPARC: 22,00%
NRC: 13,20%
ARC: 04,40%
CONICYT: 04,40%
CONICET: 02,20%
MCT: 02,20%

b) Gemini Sul:

NSF (incluindo a astronomia chilena): 51,60%
PPARC: 22,00%
NRC: 13,20%
ARC: 04,40%
CONICYT: 04,40%
CONICET: 02,20%
MCT: 02,20%

Em termos gerais, esses percentuais representam o investimento na construção e no comissionamento, e também o tempo de uso dos equipamentos que cabem a cada país. A partir de 2003, com a redistribuição do tempo chileno que estava maior do que as suas necessidades, os números ficaram assim: (30)

a) Gemini Norte:

NSF (incluindo a Universidade do Havaí): 53,91%
PPARC: 22,00%
NRC: 13,86%
ARC: 05,72%
CONICYT: 00,00%
CONICET: 02,20%
MCT: 02,31%

b) Gemini Sul:

NSF (incluindo a astronomia chilena): 53,910%
PPARC: 22,00%
NRC: 13,86%
ARC: 05,72%
CONICYT: 00,00%
CONICET: 02,20%
MCT: 02,31%

Uma das características desse consórcio, bem como do SOAR que será visto a seguir, é a presença de um escritório nacional do Gemini em cada país membro, responsável por fazer a gestão e a parte administrativa do projeto, além da intermediação entre a comunidade astronômica e o observatório, tanto o Gemini Sul quanto o Gemini Norte (Bruch, 2011; Pastoriza, 1994). O papel do LNA nessa empreitada, portanto, é ser o Escritório Brasileiro do Observatório Gemini. É ao LNA que o astrônomo se remete para solicitar tempo no Gemini, de acordo com seu regimento interno, que implica a submissão de projetos num prazo predeterminado à Comissão de Programas. Além disso, o LNA oferece treinamento, estatísticas de uso, status dos programas, acompanhamento das publicações relacionadas, entre outras ações e ferramentas de apoio ao usuário.
  
SOAR

O consórcio SOAR (Southern Observatory for Astrophysics Research), por sua vez, começou a ser discutido mais amplamente com a comunidade astronômica brasileira no workshop organizado pelo LNA em Itajubá no dia 27 de outubro de 1994. Como, a partir daí, solicitaram-se recursos às agências FAPESP, FAPERJ, FAPEMIG, FAPERGS, CNPq e FINEP, nos dias 13 e 14 de dezembro de 1995 realizou-se na FAPESP mais um workshop sobre o mesmo assunto para que as agências pudessem avaliar o projeto. Era a primeira vez na história da ciência brasileira que todas essas agências de fomento se reuniam em torno de um mesmo projeto.

O primeiro workshop, relatado por Francisco Jablonski (1995), contou com a presença de 31 participantes – dos quais a maioria era de membros da comunidade astronômica brasileira, mas também representantes da indústria, de agências de fomento e das instituições parceiras (UNC e CTIO) – que discutiram o projeto SOAR. Mais precisamente, esse workshop partia da já constatada necessidade de um instrumento intermediário entre o Perkin Elmer de 1,60m do OPD e os telescópios Gemini de 8m, passando pelo estudo da possibilidade de uma parceria com a UNC e o CTIO para construir um telescópio de 4m que envolvesse a indústria nacional. Para isso, alguns participantes fizeram palestras e debateram sobre: 1) o desenvolvimento da astronomia no Brasil; 2) a necessidade de um telescópio de 4m para a astronomia brasileira; 3) o projeto SOAR da perspectiva da UNC; 4) a justificativa do projeto SOAR; 5) aspectos técnicos do projeto SOAR; 6) as condições de fabricação da indústria brasileira; e 7) o projeto SOAR na perspectiva do NOAO.

O segundo workshop, relatado por Jacques Lépine (1995), contou com representantes das agências de fomento, relatores externos, observadores de outras instituições e cerca de 25 membros da comunidade astronômica brasileira, e realizou-se pouco mais de um ano após o primeiro. Houve palestras e debates sobre: 1) a astronomia brasileira e o SOAR; 2) a necessidade de observações de núcleos ativos de galáxias; 3) o SOAR e as estruturas em grande escala no universo; 4) a astronomia estelar com o SOAR; 5) os aspectos técnicos do Projeto SOAR; 6) a participação da indústria brasileira na construção do SOAR; e 7) a operação e administração do SOAR. Segundo o relator (Lépine, 1995, p. 33):

"De forma geral, a avaliação foi profunda, sendo que foram discutidas a capacidade da comunidade em produzir resultados com um telescópio de 4m, a importância do projeto para o desenvolvimento da astronomia do país, as características técnicas do projeto, seus custos, projetos alternativos, o envolvimento da indústria brasileira, aspectos administrativos, etc. Podemos dizer que nunca um projeto foi analisado de forma tão séria e aberta na área de astronomia."
  
Nas sessões abertas de discussões, a questão que causou mais polêmica foi justamente uma colocada pelo representante da FAPESP, Moysés Nussenzveig, sobre as supostas falta de liderança e baixa produtividade do LNA, com base num artigo publicado naquela mesmo ano pela Ciência Hoje que dizia que a CP do LNA dava tempo sem critérios. Foram apresentados vários documentos para desmentir essa crítica, alguns dos quais serão vistos na próxima seção. Segundo Lépine (1995, p. 27), usuário externo do LNA, a comunidade não concorda com essa crítica, já que as CPs, que são constituídas por membros da própria comunidade, “funcionam sem interrupções desde 1981, utilizando praticamente os mesmos critérios, que são públicos”. Além disso, segue ele: “O LNA é o primeiro laboratório nacional orientado para o atendimento da comunidade, e preenche bem seu papel. Não havia motivo, até o momento, de se exigir liderança científica de seus membros.”

O contrato do SOAR foi assinado em 1998 pelo CNPq em nome da FINEP, da FAPESP, da FAPERJ, da FAPEMIG e FAPERGS. Além do Brasil, assinaram esse documento três instituições norte-americanas, a Associação de Universidades para Pesquisa em Astronomia (Association of Universities for Research in Astronomy – AURA) em nome do Observatório de Astronomia Ótica Nacional (National Optical Astronomy Observatory – NOAO), a Universidade da Carolina do Norte (University of North Carolina – UNC) e a Universidade Estadual de Michigan (Michigan State University – MSU). Em 2008, uma emenda foi feita para ajustar o contrato às mudanças na política científica brasileira: o MCT passou a ser o seu signatário. Nessa emenda destaca-se a participação do LNA: “O MCT concorda que todas as questões operacionais e de gestão no contexto da participação brasileira no SOAR continuarão a ser tratadas, como já é feito, pelo LNA, que é parte integrante da estrutura do MCT.” (31) Como já foi dito antes, assim como no Consórcio Gemini, o LNA é o escritório nacional do Consórcio SOAR.

O objetivo desse contrato era “estabelecer um consórcio educacional e de pesquisa, a ser conhecido como Consórcio SOAR (‘SOAR’), para o projeto, a construção e a operação de um telescópio de 4m, com instrumentação e edificações de apoio relacionadas, que será localizado em Cerro Pachón, uma montanha na região central do Chile”. (32) E assim foi feito. Fruto dessa parceria Brasil/EUA, o telescópio SOAR foi inaugurado em abril de 2004, a 2700m de altitude, bem próximo ao Gemini Sul. (33)

Em termos de custos da empreitada, cada membro do consórcio contribui proporcionalmente à sua cota de tempo de observação, assim distribuído no contrato:

Brasil – 30,9%
MSU – 13,4%
NOAO – 30,1%
UNC – 15,6%
Chile – 10%

Na primeira emenda ao contrato, feita em 1999, um pequeno reajuste foi feito, mas o Brasil continuou sendo o sócio majoritário:

Brasil – 30,7%
MSU – 12,5%
NOAO – 30%
UNC – 16,7%
Chile – 10%
   
Em 2008 houve uma rearrumação orçamentária do consórcio, e o Brasil passou a ter uma participação de 34,4%. (34)

A avaliação geral desses projetos multinacionais pela comunidade astronômica brasileira tem sido muito positiva. Por exemplo, segundo Sueli Viegas (1998, p. 8), esses projetos “podem fornecer a base instrumental adequada para a manutenção do desenvolvimento da astronomia neste país”. Além disso, ela identifica uma “passagem para a maioridade” nesses projetos que, ao formarem novos doutores em contato com outros centros, fortalecem e tornam mais competitiva a astronomia no Brasil. Ela conclui dizendo que os “projetos Gemini e SOAR podem propiciar à comunidade um treinamento intenso em acordos de cooperação científica internacional que será muito útil para o futuro” (ibid., p. 13).

Em relação ao SOAR especificamente, Jacques Lépine (1998, p. 17) lembra também a união dos astrônomos brasileiros. Para ele, trata-se de “um feito sem precedentes conseguir reunir recursos da FAPESP, FAPEMIG, FAPERJ, FAPERGS, CNPQ e FINEP; proeza na qual os astrônomos brasileiros foram pioneiros, entre todas as áreas da ciência brasileira” (Lépine, 1998, p. 17). Ele também destaca o bom funcionamento do LNA como “uma das mais importantes conquistas da astronomia brasileira” (ibid., p. 18), sugere que se faça um banco de dados nacional para agilizar a produção científica e diz que “todo esforço deve ser feito para que nossa participação no SOAR e no Gemini dêem certo” (ibid., p. 20).


(29) Boletim da SAB, ano 9, no. 4, julho 1987, p. 28-30.
(30) Apesar de a diferença numérica ser pequena, de fato o tempo disponível dobrou, “inicialmente por meio da aquisição de tempo de telescópio de outro parceiro do consórcio [Chile] e, futuramente, por meio de um aumento formal da cota brasileira no Gemini” (LNA, 2010, p. 9). Cf. também contrato do Gemini e respectivas emendas.
(31) Cf. contrato do SOAR e respectivas emendas.
(32) Cf. contrato do SOAR e respectivas emendas.
(33) Na última parte deste blog veremos com mais detalhes a configuração e as características técnicas e científicas dos telescópios e de outros instrumentos não só do Gemini, do SOAR e do OPD, mas também do CFHT e do ESO, todos disponíveis à comunidade astronômica brasileira por meio do LNA.
(34) Cf. terceira emenda do contrato do SOAR.

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