1.2 - O projeto astrofísico brasileiro e a cooperação multi-institucional: percurso até a instalação do OAB


"Tínhamos plena consciência de ser parte de um projeto maior, e fazíamos nossas observações às vezes sem muita técnica, mas sempre de forma sincera e honesta, num prenúncio do trabalho científico que alguns de nós realizaríamos depois." (Walter Maciel, 1994)

"Eu confesso que a gente entrou naquilo sem muita experiência, e muita coisa a gente fez errado, mas no fim chegou lá." (Germano Quast, 2011)



Como vimos nas postagens anteriores, Muniz Barreto foi figura de destaque no projeto de desenvolvimento da astronomia brasileira nos anos 1960 e 1970. Mas, como ele mesmo relata em 1976, isto não teria sido possível sem a cooperação científica, inicialmente entre ON e IAG:

"Para que esse desenvolvimento pudesse ser efetuado sem a duplicação de esforços, sem o desperdício de atividades e a curto prazo, tornava-se necessário um plano integrado de que participassem todas as instituições de pesquisa astronômica do país. A elaboração e a execução desse plano tiveram início em 1964, com a participação do Observatório Nacional e do Instituto Astronômico e Geofísico da USP, naquela ocasião praticamente as únicas instituições de pesquisa astronômica do país, e contaram com o apoio decisivo do CNPq." (Barreto, 1976, p. 2).

Também já vimos que Abrahão de Moraes foi o mentor do Plano de Desenvolvimento da Astronomia no Brasil, que foi amplamente discutido com seus colegas franceses. Três deles constituíram uma comissão – a Comissão Rösch – e estiveram aqui em 1964 para auxiliar na escolha de sítio do observatório astrofísico brasileiro, reeditando uma parceria em astronomia que já havia ocorrido entre o fim do século XIX e o início do XX entre Brasil e França. Além da escolha de sítio, eles também participaram direta ou indiretamente da formação de alguns personagens desta história, ministrando cursos aqui ou recebendo jovens doutorandos lá.

Jean Delhaye (1921-2001), Jean Rösch (1915-1999) e Roger Cayrel (1925) são astrônomos franceses que, na ocasião, eram, respectivamente, diretor do Observatório de Besançon, diretor do Observatório de Pic du Midi e chefe da Seção de Astrofísica do Observatório de Paris. Por conta da comissão formada sob coordenação da União Astronômica Internacional (UAI) em 1964, foram eles que deram o pontapé inicial na escolha do local apropriado para a construção do tão sonhado observatório astrofísico brasileiro. Para isso, basearam-se nas discussões em torno do Plano de Desenvolvimento da Astronomia no Brasil, cuja primeira versão, como já vimos, foi proposta em 1961 por Abrahão de Moraes (11).

Pouco antes da formação dessa comissão, Jean Delhaye já colaborava com Abrahão de Moraes no IAG no que dizia respeito à aquisição de equipamento, tendo em vista que haviam se conhecido na Assembleia Geral da UAI em Berkeley (1961). Sua primeira visita ao Brasil, no entanto, foi a convite da Universidade Federal do Rio de Janeiro, para dar um curso de dois meses em 1961. Além disso, décadas depois, escreveu o primeiro capítulo de um dos poucos livros sobre a história da astronomia no Brasil, organizado por Beatriz Barbuy, Joiio Braga e Nelson Leister (1994), A astronomia no Brasil: depoimentos (12). 

Em seu texto, Delhaye dá um testemunho sobre esse período da história da astronomia no Brasil, e lembra que Abrahão de Moraes incentivou a cooperação franco-brasileira nos anos 1960, elaborando um plano realista que considerava não só os programas de investimento, mas também o recrutamento e a formação de pesquisadores e técnicos. Segue dizendo que, junto com Muniz Barreto, Abrahão de Moraes assumiu a responsabilidade de criar um observatório nacional de astrofísica, e que, numa ação cooperativa, vários jovens brasileiros foram trabalhar em observatórios franceses e voltaram com o título de doutor.
Sobre a escolha de sítio do observatório astrofísico, que ficou a cargo do Observatório Nacional, Delhaye reconhece que ela foi demorada, mas justifica dizendo que isso se deu porque os critérios de escolha para esse tipo de observatório são mais rigorosos do que para a escolha de um sítio de observatório astrométrico. E, finalmente, sobre a escolha final do sítio, a instalação do telescópio e os primeiros usuários, o astrônomo francês diz (13):

"Diversos sítios foram estudados, dos quais se escolheu o Pico dos Dias (1860m), próximo de Itajubá (Minas Gerais), onde primeiro se instalou um telescópio de 1,60m de diâmetro, que foi inaugurado em 1981, quase 20 anos após o início da colaboração mencionada. Os primeiros usuários desse telescópio puderam ser formados ao longo desse extenso período, e foram aqueles jovens doutores que estudaram no exterior e que, nessa altura, já haviam constituído no Brasil um ensino de qualidade." (Delhaye, 1994, p. 16).

Delhaye diz que foi uma alegria ter sido parceiro privilegiado de Abrahão de Moraes nesse programa, porque teve a oportunidade de participar de uma aventura apaixonante e enriquecedora. Ademais: “o sucesso dessa empreitada deve ser creditado a seu instigador, seus primeiros alunos e aqueles que lhe deram continuidade” (Delhaye, 1994, p. 16).

Jean Rösch, por sua vez, além de diretor do Observatório de Pic du Midi, era também presidente do GT para escolha de sítio da UAI, no interior do qual se desenvolveram as primeiras discussões sobre o Plano de Desenvolvimento da Astronomia no Brasil. Foi ele também o responsável pelo relatório Étude preliminaire sur le choix de l’emplacement d’um Observatoire Astrophysique au Brésil (14), no qual se basearam os primeiros trabalhos de escolha de sítio. Foi justamente nesse relatório que Muniz Barreto se apoiou para fazer o Relatório Preliminar 1, redigido em 1966 para uso dos pesquisadores que participavam da escolha de sítio, mas que foi publicado em 1967 com o título Notas para as observações de escolha de sítio. Seguiram-se a esta várias outras publicações do ON desdobrando ainda mais o assunto (15),  e, por último, o relatório final de Sylvio Ferraz Mello (1982), que se seguiu a Muniz Barreto na coordenação da escolha de sítio para o OAB (de 1971 a 1975 com o apoio do ITA e da FAPESP), todos tendo sempre a referência inicial do relatório de Rösch.

Ferraz Mello (1982, p. 5-6), sobre o qual falaremos com mais detalhes em breve, mas que já se pode adiantar que foi um dos mentores da astrofísica brasileira das décadas de 1960-70, reconhece os acertos desse relatório da Comissão Rösch, mas considera que seus erros foram uma das causas do atraso na escolha de sítio para o OAB:

"Os trabalhos dessa comissão basearam-se nas estatísticas do Serviço Meteorológico do Ministério da Agricultura, e no sobrevôo ou visita a alguns locais possíveis. De início constatou a comissão o importante problema da névoa seca, e que o problema principal seria o de encontrar um local onde a soma das noites perdidas por nuvens ou por névoa seca fosse a menor possível. Alguns erros nesse relatório, que como seu título indica, era apenas um estudo preliminar, levaram alguns anos até que fossem corrigidos e estão entre as causas do atraso dos trabalhos de escolha de sítio à época em que se decidiu pelo projeto encaminhado à FAPESP. A região sul-mineira foi excluída do relatório por sua proximidade do Oceano. [...] O relatório conclui pela preferência aos picos da região a N-W de Belo Horizonte [...], como mais favoráveis: Serra da Piedade, Mateus Leme e Serra da Boa Vista."

Ou seja, o Pico dos Dias, local onde finalmente se construiu o OAB, não constava como opção no relatório de Rösch.

Germano Rodrigo Quast, mais um dos pioneiros da astrofísica brasileira, também concorda com Ferraz Mello sobre o atraso na escolha de sítio e diz o seguinte:

"A gente considera essa missão Rösch um pouco, vamos dizer, desastrada, porque eles foram muito específicos. Aparentemente eles se apaixonaram pela Serra da Piedade, pelo seu aspecto morfológico. [...] Esqueceram um pouco outros aspectos, como a nebulosidade, que é muito alta naquele lugar. [...] O que causou isso [a demora na escolha do sítio] foi o relatório Rösch, ficaram muito tempo preocupados com Piedade para depois chegarem à conclusão que não era isso." (Quast, 2011).

O outro francês da Comissão Rösch era Roger Cayrel, que também esteve no Brasil em 1964 (16), retornando em 1967 para ministrar um curso (Pacheco, 1994a, p. 23). Foi com ele que Lício da Silva, mais um dos pioneiros da astrofísica brasileira que conheceremos melhor na sequência, trabalhou em Paris, quando chegou lá em 1968. Segue-se uma passagem em que Lício menciona essa experiência com Cayrel numa época em que não havia formação em astrofísica no Brasil, aproveitando para fazer uma comparação com a formação brasileira após a instalação do LNA:

"[Quando o Abrahão de Moraes] resolveu enviar-me para Paris para um estágio em astronomia observacional, visando minha futura participação no OAB, fui trabalhar em análise de espectros estelares com um grande especialista, Roger Cayrel, sem nunca ter visto uma placa espectroscópica na vida. [...] Hoje, pelo contrário, nossos jovens já saem para estagiar no exterior levando na bagagem seu doutorado e, como eles têm demonstrado, em condições de brilhar em qualquer um dos mais conceituados grupos de pesquisa do mundo. E o LNA muito tem contribuído para isso, dando-lhes, mesmo aos mais teóricos, a necessária base observacional." (Silva, 1994, p. 88).

José Antônio de Freitas Pacheco, que, assim como Ferraz Mello e Lício da Silva, fez parte da primeira geração de astrofísicos brasileiros, também trabalhou com Roger Cayrel em Paris, depois do curso em São Paulo:

"Abrahão preocupava-se com a formação de pessoal e, como parte de seu plano, trouxera a S. Paulo no primeiro semestre de 1967, para ministrar um curso, Roger Cayrel, nome sugerido por Jean Delhaye para tal fim. Assim, semanalmente eu vinha a S. Paulo para o curso do Cayrel. No meio deste, Abrahão revelou-me que estava tudo arranjado para minha ida à França, para trabalhar com Cayrel."

Já que mencionamos Lício da Silva, Freitas Pacheco e Ferraz Mello, vejamos um pouco mais da vida desses três pioneiros da astrofísica brasileira.

Lício da Silva (Fonte: site do ON)
O primeiro deles, Lício da Silva, possui graduação em Física pela Universidade de São Paulo (1963) e doutorado em astrofísica pela Université de Paris VII – Université Denis Diderot (1973). Aposentou-se recentemente como professor titular do Observatório Nacional, de onde também foi diretor de 1981 a 1982. Ademais, é membro de CTC do Laboratório Nacional de Astrofísica e da Sociedade Astronômica Brasileira. Sua experiência na área de astronomia teve ênfase em astrofísica estelar, atuando principalmente nos seguintes temas: estrelas, abundância estelar, atmosfera estelar, evolução da galáxia. Sua produção científica é relevante, com várias publicações, orientações, participações em bancas e apresentações de trabalho.

Junto com Germano Quast e Carlos Alberto Torres, que conheceremos melhor em breve, Lício da Silva é a memória viva do OAB-LNA, pois foi o responsável pela implantação do Observatório, tendo redigido o documento “Observatório Astrofísico Brasileiro – Planejamento Geral – Coordenadoria de Astrofísica – CNPq – Observatório Nacional” (17), para o triênio 1979-1981. Vale lembrar que, com as mudanças administrativas ocorridas no ON em 1979, Lício da Silva passou a ser o coordenador da astrofísica. Além dessa coordenação, havia também a de Astronomia, Radioastronomia e Geofísica, respectivamente a cargo de Ronaldo Mourão, Jaques Lépine e Jean-Marie Flexor. A direção era ocupada por José Antônio de Freitas Pacheco.

Nesse documento, o Planejamento Geral do triênio 79-81, vemos que, além da sede administrativa em Itajubá e do Centro de Observação (CO) no Pico dos Dias, eram previstos um Centro de Astrofísica (CA) em Brazópolis (considerado imprescindível por Lício da Silva) e a construção de um telescópio de 1m. Para Silva, o CA deveria ser próximo ao CO, caso contrário o rendimento cairia 20%, causando enorme prejuízo à astronomia brasileira. Em seu planejamento menciona Itajubá ou imediações, e promessas de apoio das prefeituras. Como sabemos, nada disso se realizou, tendo em vista que a sede em Itajubá só foi inaugurada em 1992, mais de dez anos depois da instalação do observatório, mas como sede administrativa, e não um CA.

Antes de assumir essa responsabilidade na reta final da implantação do OAB, Lício da Silva já contribuía com a escolha de instrumentos mesmo estando na França, como podemos ver neste trecho do seu depoimento sobre a astronomia no Brasil (1994, p. 89): “pude dar meus ‘palpites’ em cartas ao Muniz, que gentilmente mantinha-me a par do processo [...], alertar para os defeitos do telescópio de 60” feito pela Reosc (18) para o ESO, que eu conhecia bem por tê-lo utilizado e por ser amigo do pesquisador encarregado de sua manutenção”. Sua participação nesse período também se encontra registrada em cartas de Muniz Barreto para ou sobre Lício da Silva entre 1971 e 1973, sobretudo tratando de instrumentos, mas também de questões práticas, como a contratação de Silva e Quast pelo ON. (19)

Em março de 1982, já como diretor do ON, Silva publicou o relatório anual das atividades do Observatório Nacional no Boletim da SAB, mencionando a entrega do OAB à comunidade astronômica brasileira no ano anterior e a mais-valia que isso representava, tendo em vista que se poderia contar, a partir de então, com um “instrumental internacionalmente competitivo, que deverá ser o responsável por um novo impulso nas suas pesquisas” (Silva, 1982, p. 32), o que de fato aconteceu.

Lício da Silva sempre demonstrou interesse em registrar a história do ON e do LNA, como se pode ver nessas duas passagens: 1) “Espero em breve convencer o Muniz (20) e os demais colegas que participaram ativamente da sua implantação, em particular o Germano e o Carlos Alberto, para juntarmos nossas recordações e escrevermos a pré-história do LNA. Antes que fiquemos decrépitos demais.” (Silva, 1994, p. 90); e 2) “A importância desses fatos é tão grande que, temos certeza, deverá transformá-los em balizadores quando, no futuro, escrever-se a história do Observatório Nacional.” (Silva, 1982, p. 31).

Por isso, além das diversas publicações científicas, em seu depoimento sobre a astronomia no Brasil, chamado “O início da astrofísica no Observatório Nacional: um depoimento estritamente pessoal”, Silva (1994) revelou-nos a sua perspectiva sobre a instalação do OAB, transformando-se numa fonte importante para esta pesquisa. Vejamos algumas passagens que ainda não foram citadas e que vale a pena destacar por serem esclarecedoras não só do papel de Lício da Silva nesta história, mas também de suas opiniões, críticas e concepções sobre formação em astronomia no Brasil, política científica, escolha de sítio, Centro de Astrofísica, instrumentos, história do LNA, entre outros assuntos:

"Apesar da tarefa hercúlea que era, para um tão pequeno grupo, a instalação do OAB, nós tentávamos ainda realizar pesquisa e colaborar na formação dos mais jovens. No meu caso particular, ninguém me deu a liberdade de escolher se me julgava “pronto”, ou não, para orientar tese de mestrado em espectroscopia. Além de mim, só tinha eu mesmo para isso." (p. 84-5)

"Quando cheguei ao País, a decisão de onde colocar o OAB já estava tomada. Não participei, portanto, nem do período heróico da escolha de sítio, nem da histórica reunião em que Sylvio convenceu seus colegas de que o Pico dos Dias era o melhor (ou o menos ruim, como dizem as más línguas) de todos os sítios analisados até então. [...] Durante muito tempo lastimei que o escolhido não tivesse sido o Pico de Caldas, por estar próximo de Poços de Caldas. Julgava, e assim penso até hoje, que esta cidade, por ser de maior porte e mais atrativa para morar, teria possibilitado um maior desenvolvimento do OAB, permitindo a implantação de um grupo de pesquisa próximo ao telescópio, apesar, ou exatamente por isso, de estar mais longe do eixo Rio-São Paulo. Provavelmente isso teria tornado inevitável a criação do, tão sonhado por nós do OAB, Centro de Astrofísica, próximo ao telescópio, como único meio de garantir sua manutenção. O que teria propiciado um grande avanço na área de instrumentação, que nos seria extremamente útil agora que temos a possibilidade de participar do desenvolvimento instrumental para o projeto Gemini." (p. 88-9)

"Ainda com respeito à localização do LNA, não consigo deixar de achar graça quando ouço alguém dizer que ele não deveria ter sido instalado no Brasil, mas sim no Chile. Isso só pode ser defendido seriamente por alguém que não conheça os fatos históricos do LNA. [...] O pequeno e inexperiente grupo de astrônomos que éramos não teria a menor condição de levar adiante um tal projeto no exterior, o qual, aliás, seria totalmente inviável politicamente, pois nunca iríamos convencer o governo ditatorial e de tão limitada visão que tínhamos a investir num projeto a ser instalado no exterior. Além do mais, teria sido um grande erro: precisávamos ter um telescópio “no nosso quintal”, aonde fosse fácil e barato levar nossos estudantes para terem uma formação adequada. Agora sim a situação é diferente: tendo um observatório “à mão”, podemos partir para uma nova fase e instalar outros telescópios em lugares cientificamente mais rentáveis e mais interessantes, logo fora do País. O resto é baboseira de quem não conhece os fatos ou de quem só fala para aparecer." (p. 89-90)

José Antônio de Freitas Pacheco (Fonte: site do ON)

Outro pioneiro da astrofísica no Brasil, José Antônio de Freitas Pacheco, é bacharel em Física pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (1965) e também faz parte da primeira geração seduzida pelos mentores do projeto astrofísico brasileiro, Abrahão de Moraes (do IAG-USP) e Muniz Barreto (do ON). Sobre essa época e o “entusiasmo astrofísico” de Abrahão de Moraes, Pacheco (1994a, p. 20) diz o seguinte:

"Apesar dos problemas políticos do país, Abrahão estava com um ânimo totalmente diferente daquele em que eu o havia conhecido tempos atrás. Entusiasmado, falava dos planos de um futuro telescópio para um observatório de astrofísica nacional, escolha de sítio com a participação de franceses (a chamada 'missão Roche'), formação de pessoal, etc. Nosso contato passou a ser quase diário e, não raro, eu frequentava sua casa (onde se situa hoje a diretoria do IAG), mesmo nos fins de semana. Assim, gradativamente, fui sendo 'reconquistado' para fazer astrofísica."

Professor de Mecânica Analítica na Universidade Mackenzie desde 1966, Pacheco foi levado ao ITA por Abrahão de Moraes em 1967 para dar aulas de astronomia e adquirir experiência observacional. Foi lá que conheceu Germano Quast, que estava se formando; Muniz Barreto, que ia nos fins de semana dar cursos de astronomia; e Sylvio Ferraz Mello, que estava retornando de seu doutorado na França; entre outros. Sobre esses importantes encontros, a precariedade da astrofísica brasileira na época e os primeiros passos dessa geração para mudar esse quadro, vejamos seus comentários:

"Germano e eu começamos um estudo de estrelas variáveis, usando um fotômetro desenvolvido por um outro engenheiro do ITA que se encontrava na França preparando seu doutoramento: Paulo Benevides Soares. [...] No ITA também conheci Luiz Muniz Barreto, que vinha todo o fim de semana do Rio de Janeiro, ministrar-nos um curso de astronomia que contava com a presença de Abrahão, o 'perguntador' oficial da classe. A vinda de Sylvio a S. José dos Campos veio animar nosso pequeno grupo. Com sua maior experiência, organizou seminários e cursos de alto nível [...]. No entanto, nem Sylvio nem Abrahão tinham uma grande vivência nos problemas de astrofísica e isto causou uma das grandes frustrações de minha vida. [...] Acho também que a ida do Sylvio a S. José foi muito positiva. Lá encontrou condições para organizar a primeira pós-graduação do país em Astronomia, permitindo a formação de nossos primeiros mestres, entre os quais posso mencionar: Walter Maciel, E. J. [Eduardo Janot] Pacheco, Luiz B. [Bernardo] Clauzet, L. [Luiz] Arakaki, C. A. P. O. [Carlos Alberto Pinto de Oliveira] Torres e vários outros." (ibid., p. 21-2)

Em setembro de 1967, Pacheco foi para o Observatório de Nice, na França, onde, em 1971, defendeu sua tese de doutorado. De volta ao Brasil, tornou-se professor colaborador no IAG, participou na elaboração da estrutura do instituto e na criação de seus cursos de pós-graduação, vindo a ser o primeiro chefe do Departamento de Astronomia e o primeiro coordenador da Comissão de Pós-Graduação. Nessa mesma época, o projeto astrofísico brasileiro estava sendo levado a cabo, nesse momento sob coordenação de Muniz Barreto, e alguns mal-entendidos vieram à tona. Vale lembrar que havia uma divisão de trabalho previamente acordada entre o IAG e o ON, na qual o primeiro ficaria responsável pela formação de pessoal, e o segundo, pela escolha de sítio e instrumentos:

"Outra questão polêmica refere-se à aquisição do telescópio de 60cm do IAG. Levei ao diretor minha preocupação de que iríamos desenvolver uma pós-graduação em astronomia, sem qualquer instrumento para a prática observacional. Giacaglia encampou de imediato tal ideia e conseguiu, junto ao reitor, recursos para a aquisição de um telescópio de 60cm da Perkin-Elmers. Este projeto desencadeou, de forma inexplicável, a ira do diretor do Observatório Nacional, Luiz Muniz Barreto." (Pacheco, 1994a, p. 26)

Esclarecendo melhor essa querela, Pacheco diz o seguinte:

"Hoje o telescópio de 60cm encontra-se no sítio do LNA. No entanto, é preciso que se saiba que desde o início era esta a nossa intenção. Giacaglia, Janot Pacheco e eu mesmo tivemos uma longa entrevista com o reitor Miguel Reale, tentando mostrar-lhe as razões para instalar o telescópio no Pico dos Dias. O reitor mostrou-se irredutível, com uma contra argumentação de caráter mais passional, manteve o sítio de Valinhos como o local da instalação. Foi um erro. Poderíamos ter feito mais ciência se o telescópio tivesse ido para Brasópolis desde o início." (ibid., p. 27)

E sobre a escolha de sítio, coordenada na reta final por Sylvio Ferraz Mello, Pacheco testemunhou a reunião decisiva:

"Sylvio Ferraz era o responsável, naquele momento, pela escolha de sítio do futuro Observatório Astrofísico Brasileiro, hoje LNA. Muitos, sem conhecerem os fatos, ao tomarem consciência da baixa qualidade meteorológica do Pico dos Dias, atribuem uma certa responsabilidade ao Sylvio. A bem da verdade, eu estava presente na reunião de S. José dos Campos onde foi tomada a decisão de se escolher o local. Na ocasião, Sylvio considerava a decisão prematura e pedia mais um ano para obtenção de dados e análise." (ibid., p. 28)

Como já mencionado em outro momento, Pacheco disse que nessa reunião Muniz Barreto “forçou” a decisão, mas sabemos também que havia um compromisso de todas as instituições participantes em encerrar a escolha de sítio em 1973, porque o cronograma tinha que ser cumprido, inclusive no que diz respeito à aquisição dos equipamentos, que já estava atrasada (21). Por outro lado, também não era segredo para ninguém que, desde 1971, Barreto reclamava da falta de confiança demonstrada pelo pessoal do IAG (22).

Ao contrário de Pacheco, Germano Quast não se lembra de Barreto ter forçado a decisão e diz que:

"Nunca houve consenso na escolha de sítio até hoje. [...] Eu pessoalmente talvez estivesse melhor em Caldas, uma cidade melhor, Poços de Caldas, uma cidade turística, mais infraestrutura. [...] Eu, na época, fiquei do lado de decidir apenas tecnicamente. [...] Os instrumentos que decidiram. Eu queria destacar mais a participação do Paulo Marques. Toda a parte de instalação dessas estaçõezinhas meteorológicas foi ele que fez. [...] A palavra final era a questão técnica levantada dessas últimas observações coordenadas pelo Sylvio Ferraz. Pode ser que o Muniz Barreto tivesse algum argumento menos técnico, mas que pode ser importante, por exemplo, a questão da dificuldade da estrada." (Quast, 2011).

Em 1978, Pacheco foi novamente para Nice, mas voltou ao Brasil em 1979, assumindo a direção do Observatório Nacional (até 1981). O site do ON destaca as seguintes ações da sua gestão: criou o primeiro laboratório de imagens e tratamento de dados do país; reformulou toda a pós-graduação, inclusive com a criação do curso de Geofísica e um amplo programa visando aumentar o número de doutores no quadro do Observatório Nacional; e, para o que nos interessa aqui, nesse período foi instalado, de fato, o Observatório Astrofísico Brasileiro (hoje Laboratório Nacional de Astrofísica). Em 1985, Pacheco retorna a São Paulo e assume a direção do IAG quatro anos depois. Além disso, foi diretor do Observatório da Côte d’Azur de junho de 1994 a maio de 1999. Desde então sua atividade acadêmica está vinculada a essa instituição e à Universidade de Nice.

Ainda de acordo com o site do ON, em sua carreira científica Pacheco publicou mais de 170 artigos científicos em revistas internacionais, apresentou cerca de 60 trabalhos em simpósios e outras reuniões internacionais e mais de uma centena de comunicações em outras reuniões realizadas no país. Orientou cerca de 20 teses de mestrado e 22 de doutoramento no Brasil e na França. Seu principal campo de pesquisa é o estudo da evolução química das galáxias e cosmologia em geral.

Sylvio Ferraz Mello (Fonte: site do ON)

Outro representante da primeira geração de astrofísicos brasileiros foi o já mencionado Sylvio Ferraz Mello (1936), que se formou em Física pela Universidade de São Paulo (1959), doutorando-se em Ciências Matemáticas pela Universidade de Paris (1966). Sua experiência desenvolveu-se em dinâmica do sistema solar e sistemas planetários extrassolares, estudando sobretudo asteroides, ressonância, marés, caos e planetas extrassolares, mas isso não se deu sem dificuldade, como podemos ver em seu depoimento sobre a astronomia no Brasil:

"Eu cheguei à Astronomia em 1956 [...]. Havia dois observatórios: o Observatório Nacional, no Rio de Janeiro, e o Observatório de São Paulo. [...] Tinham um grande entusiasmo e acalentavam o sonho de um dia instalar um telescópio de maior porte, talvez na Serra da Bocaina. [...] [N]aquele tempo a Astronomia era simplesmente inexistente no Brasil. As tradições passadas haviam desaparecido. [...] Mas [Abrahão de Moraes] dizia e repetia que a implantação da Astronomia no Brasil só podia começar pela formação no exterior de pesquisadores interessados nessa ciência. Em 1962, graças às suas iniciativas e à recém-fundada FAPESP, partimos para o exterior [...]. E muitos outros se seguiram. No seu retorno ao país [esses jovens pesquisadores] começaram a construir as bases da moderna Astronomia Brasileira." (Mello, 1994, p. 31-3)

Na sua volta ao Brasil, em 1967, Mello (1994, p. 33) lembra que: “as querelas [no IAG] se sucediam [...], os físicos interessados em Astronomia que se graduavam tinham que ir trabalhar em outros lugares [...]. Eu optei pelo ITA. [...] No ITA, o apoio institucional foi grande.” Foi lá que ele conheceu Germano Quast, Carlos Alberto Torres, Freitas Pacheco, entre outros jovens envolvidos no projeto astrofísico brasileiro. Ainda sobre esse tempo, sobre os primeiros anos da escolha de sítio e o problema dos instrumentos, diz ele:

"A maior preocupação daqueles tempos era a falta de um bom telescópio. Na década de 60, Abrahão de Moraes, com o apoio de Jean Delhaye e de astrônomos franceses, deu início à escolha de sítio para a instalação de um telescópio de médio porte. A execução desse trabalho ficou sob o encargo de Muniz Barreto. Havia muita dedicação, muito entusiasmo, mas pouca verba e nenhuma organização. A ignorância do clima brasileiro levou de início à região de Belo Horizonte, descartando-se a priori as proximidades da Serra da Mantiqueira. Foram muitos anos de trabalho para se concluir que a situação era ruim em toda a parte e que os únicos locais altos com algumas possibilidades estavam no sul de Minas, nos contrafortes internos da Serra da Mantiqueira. Quanto ao telescópio, só havia o sonho, e essa primeira fase do trabalho de escolha de sítio foi marcada pela realidade de estar-se escolhendo um sítio para um telescópio inexistente." (Mello, 1994, p. 34)

Mello destaca também o traço marcadamente cooperativo desse projeto desde o seu início:

"[Muniz Barreto] preparou um projeto que não era de uma instituição, mas o de uma comunidade. O pedido era feito em nome do Observatório Nacional, do Instituto Tecnológico de Aeronáutica, do Centro de Radioastronomia da Universidade Mackenzie, da Universidade Federal de Minas Gerais e da Universidade de São Paulo. Acho que foi a primeira vez, no Brasil, que se apresentou às agências financeiras um projeto para equipar um laboratório nacional e não um grupo." (Mello, 1994, p. 35)

Mello assumiu a coordenação dos trabalhos para escolha de sítio do observatório astrofísico em 1971. Conseguiu financiamento da FAPESP, por isso foi o relator final em 1975, e, na década seguinte, publicou o livro Escolha de sítio para o Observatório Astrofísico Brasileiro (1982), um relatório do período em que esteve à frente dos trabalhos de escolha de sítio. Sobre a organização dessa segunda fase do projeto, diz ele (Mello, 1994, p. 35):

"Antes procurávamos lugar para um telescópio inexistente. Agora o telescópio deixava de ser um mero sonho e o lugar para instalá-lo não existia. Os trabalhos de escolha de sítio passaram a ser centralizados no ITA e, graças ao apoio da FAPESP, foi iniciada uma segunda fase cobrindo vários pontos ao longo da Serra da Mantiqueira."

Já foram citados os fomentos do CNPq e da FAPESP, mas há que se mencionar também o convênio 146/CT do ON com a FINEP, firmado em 1972 para construção do observatório astrofísico brasileiro: “A aquisição, instalação, testes e início da operação do equipamento, juntamente com a construção de prédios e facilidades de apoio, constituíram-se em um projeto definido que, a cargo do Observatório Nacional, foi objeto de solicitação à FINEP, o que resultou no convênio 146/CT.” (Barreto, 1976, p. 4).

Voltando ao livro de Mello, ele justifica a decisão por Brazópolis e destaca o trabalho de campo que foi realizado por essa nova geração de pesquisadores: “O grupo de jovens pesquisadores que o levou a cabo, efetuando as tarefas de campo, merece toda consideração das gerações seguintes. E se Brazópolis não é uma maravilha, foi pelo menos o que de melhor se pôde encontrar dentro dos contornos impostos externamente ao trabalho.” (Mello, 1994, p. 35). Dentre os vários problemas graves que teve que resolver, cita os seguintes (ibid., p. 35-6):

"Havia oposição; muito trabalho em sentido contrário. Por exemplo, uma missão franco-brasileira esteve no CNPq tentando qualificar como precipitada a decisão da compra do telescópio. [...] Em outra ocasião fomos chamados ao IAG para ouvirmos de um técnico que tudo que estávamos fazendo estava errado. [...] E para completar, já com as coisas em estado mais adiantado, quando foi assinado o primeiro convênio multilateral para a futura gestão do Observatório Astrofísico Brasileiro, a USP fez-se representar pelo IAG e pelo Instituto de Física e depois deu o pulo do gato. Queria participar das decisões com dois votos. [...] Com isso o convênio morreu. E com ele quase morreu a idéia de um laboratório nacional! E teve muito mais: [...] O terreno em que hoje se encontra o telescópio de 160 cm foi doado por seus proprietários a uma universidade que fazia oposição ao projeto do OAB. A reversão desse fato tomou mais de um ano de negociações [...]."

Com tudo isso, podemos ter uma breve ideia de como Mello percebeu as forças político-científicas em jogo nesse projeto, demonstrando que elas atuaram em todos os sentidos, sobretudo visando a seus próprios interesses institucionais. Suas decisões, acertadas ou não, constituem em grande parte o que veio a ser a instalação do OAB e, mais tarde, o LNA. Assim ele encerra o seu depoimento sobre essa fase da astronomia brasileira da qual foi não só testemunha ocular, mas também um protagonista: “Toda decisão tem consequências diversas e decidir envolve a avaliação de elementos opostos. O que não devemos nunca permitir é a covardia face ao dilema. A única decisão sabidamente errada é aquela que não é tomada.” (Mello, 1994, p. 36).

Diretor do Observatório Nacional de 1999 a 2001, Sylvio Ferraz Mello atualmente é professor emérito da Universidade de São Paulo e editor chefe da revista Celestial Mechanics and Dynamical Astronomy. Dentre títulos e prêmios que recebeu, destacam-se a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico (1998) e o titulo de Doutor Honoris Causa do Observatório de Paris (2007). Além disso, seu nome, Ferraz Mello, foi dado ao asteróide 1983 XF (5201) pela União Astronômica Internacional.

Além do ON e do IAG, outra instituição que se destaca no projeto astrofísico brasileiro é o ITA, que, em meados dos anos 1960, constituiu um Departamento de Astronomia, sob coordenação de Ferraz Melo. Era lá que Muniz Barreto lecionava nos fins de semana para o grupo que foi seduzido pelo projeto. Nesse período, Freitas Pacheco também lecionou lá. No ITA ocorreram algumas reuniões importantes, como a de 1971 em que a FAPESP restringiu a escolha de sítio a Caldas ou Brazópolis, ou a de 1972 que definiu o ano seguinte como limite para a escolha de sítio, ou a de 1973 que finalmente decidiu que Brazópolis iria abrigar o Observatório Astrofísico Brasileiro. Vejamos agora mais de perto alguns dos então jovens pioneiros da astrofísica brasileira que estudaram no ITA: Germano Quast, Carlos Alberto Torres e Jair Barroso.

Germano Quast e Carlos Alberto Torres em sua sala no LNA em agosto de 2011.

Germano Rodrigo Quast nasceu em 1942 na serra catarinense, mas já se considera mineiro, tendo em vista os mais de 30 anos em Itajubá. Possui graduação em engenharia eletrônica (1966) e mestrado em astronomia (1970) pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica, e doutorado em astronomia pelo Observatório Nacional (1998). Atualmente é pesquisador titular do Laboratório Nacional de Astrofísica, onde trabalha desde 1989, atuando principalmente com estrelas jovens e desenvolvimento instrumental. Antes disso, trabalhou no Observatório Nacional de 1974 a 1989, e no ITA de 1967 a 1974. Sua produção é grande, com várias publicações, orientações, participações em bancas e apresentações de trabalho.

Em entrevista concedida no LNA em 2011, Germano Quast, um dos primeiros astrofísicos brasileiros, lembra-se de quando se interessou pela astronomia:

"Enquanto [eu era] aluno de graduação, tinha um telescópio pequeno num telhado [...] no ITA, [...] estava montado, meio abandonado. Eu gostava de ir lá observar, era um telescópio pequeno só para olhar, mas era interessante. Daí que eu comecei a me interessar seriamente pela astronomia. Para dizer a verdade, até meu pai sempre tinha um certo interesse pela astronomia. Quando [eu era] criança, ele sabia os nomes dos planetas etc."

Protagonista da história do LNA, Quast é mencionado em todos os depoimentos e narrativas não só sobre o processo de instalação do então OAB, que implicou escolha de sítio, formação de pessoal e construção de instrumentos, mas de todas as etapas dessa história até os dias de hoje, em que novas estratégias estão sendo traçadas para o futuro do atual OPD (23). José Antônio de Freitas Pacheco (1994a, p. 21-2) assim se refere ao seu primeiro contato com Quast:

"Havia um formando em engenharia eletrônica com o qual logo tive uma grande empatia, Germano Rodrigo Quast. Germano, naquele momento, preparava seu trabalho de formatura, sob a orientação de Abrahão: pretendia-se observar o efeito Einstein no eclipse em Bagé."

Em relação à escolha de sítio, Pacheco (1994a, p. 27) lembra a ação de Muniz Barreto e a sua atitude impositiva na reunião que decidiu o local de instalação do OAB, e diz que Quast estava entre os que questionavam a opção pelo Pico dos Dias:

"Se é verdade que os recursos do telescópio de 1,6m saíram graças ao empenho e à tenacidade do Muniz Barreto, é também verdade que ele 'forçou' uma decisão já naquela reunião. Talvez, de fato, não houvesse outra saída e que qualquer outra escolha não tivesse modificado tanto assim as condições do local. No entanto, algumas pessoas, entre elas Jair Barroso e Germano Quast, sempre levantaram a questão da existência de nebulosidade local, o famoso 'chapéu' em cima do Pico dos Dias. Teríamos escapado deste efeito com uma escolha mais criteriosa? Não tenho uma boa resposta e duvido que alguém possa ter. Lamento hoje que não tivéssemos tentado."

Quanto à escolha de sítio, Germano Quast disse o seguinte: “Eu confesso que a gente entrou naquilo sem muita experiência, e muita coisa a gente fez errado, mas no fim chegou lá.” E complementa: “Naquela época a gente tentava levar em conta apenas critérios técnicos [para a escolha de sítio]. Eu não sei até que ponto isso é totalmente certo, mas, é o tal problema, se a gente começa a levar em conta também fatores políticos [como os contatos com os prefeitos das cidades] depois aquilo pode virar um problema.” (Quast, 2011). Como já foi mencionado antes, Germano, pessoalmente, preferia Caldas, mas considera que a escolha foi acertadamente técnica.

Sylvio Ferraz Mello, que orientou a dissertação de mestrado de Quast, lembra o trabalho de seu orientando no ITA, local onde o apoio institucional era grande: “Em pouco tempo, graças à competência de Germano Quast, funcionava o primeiro fotômetro fotoelétrico e começava a pós-graduação.” (Mello, 1994, p. 33). Vale lembrar que a dissertação de Germano Quast foi a primeira defendida na pós-graduação em Astronomia do ITA. Sobre esse período, disse Quast (2011):

"Eu encontrei alguns equipamentos eletrônicos e, aos poucos, vi que aquilo era para ser um fotômetro. Comecei a juntar as peças, montei e acabei construindo o primeiro fotômetro. [...] Fiquei algum tempo montando aquele fotômetro, comecei a observar. [...] Formou-se, então, o Departamento de Astronomia e, nesse momento, entrou o doutor Sylvio Ferraz Mello. Isso já uns dois anos depois de eu [estar] formado, algo assim. Por orientação, por incentivo do Ferraz Mello é que comecei a pegar esse trabalho que eu fiz de montar o fotômetro e fazer as primeiras observações e juntar para uma dissertação de mestrado. O professor Sylvio que me levou a isso."
   
Paulo Benevides Soares (1994, p. 39), que estava indo para Besançon quando Delhaye, Cayrel e Rösch estavam aqui na discussão sobre a escolha de sítio do OAB (1963-4), também menciona o projeto do fotômetro fotoelétrico que Quast levou a cabo, dando mais algumas informações:

"[Em 1963] Dei início também ao projeto e construção de um fotômetro fotoelétrico estelar destinado a equipar o telescópio de 50 cm. Devido à minha inexperiência e inabilidade, não cheguei a terminar esse projeto, que foi retomado alguns anos mais tarde e concluído com êxito por Germano R. Quast, um colega mais jovem do curso de engenharia que também viria a abraçar a carreira de astrônomo."
   
Germano Quast não se recorda disso, mas, ainda sobre a sua vida no ITA nessa época, lembra-se do contexto político em que se encontrava:

"O ITA, apesar de, naquela época, estar dentro de uma instituição militar, não tinha nada a ver com o regime militar. Isso é bem interessante notar. [...] Eles tinham bastante autonomia. Questões internas eram reguladas por um departamento, chamado Departamento de Ordem e Orientação – o DOO –, e era totalmente gerido por alunos do ITA. E a gente tinha muita força mesmo em relação aos militares, a ponto de um oficial (tinha também oficiais cursando o ITA) ser expulso pelos alunos do ITA por ter colado. [...] Quando houve a revolução de 64 aí teve uma séria divisão. Teve uma parte que achava que os alunos do ITA tinham que tentar interferir na política, tinha outra parte que achava que não, nós somos estudantes, temos que formar bons profissionais, sem se meter na política. [...] Eu ficava mais nos de fora da política."

Em seu depoimento sobre a astronomia no Brasil, Lício da Silva menciona Quast várias vezes. Numa delas, fala sobre a atuação de Quast na escolha do telescópio: “Para essa decisão, baseada principalmente num relatório técnico preparado pelo Germano, pude dar meus ‘palpites’[...].” (Silva, 1994, p. 88-9).

Entre os anos de 1972 e 1973, Muniz Barreto escreveu diversas cartas para os mais variados destinatários, sobre os instrumentos para o OAB (24). Como ele mesmo diz, é uma história longa e cheia de percalços, mas que contou com a atuação crucial de Quast:

"Finalmente escolhemos a firma americana Boller & Chivens para fornecer um instrumento que obedecesse às nossas especificações. Germano Quast e eu estivemos algumas vezes em South Pasadena para acompanhar o nascimento do nosso refletor de 1,6 m de abertura, acompanhando o trabalho do saudoso Larry Burris, que morreu depois de completar o nosso telescópio." (Barreto, 1994, p. 149)

Em 1981, quando o OAB era inaugurado, ainda sob o vínculo com o ON, Germano Quast era chefe de departamento no ON, cargo que ocupou até 1983. Em 1989, com a desvinculação entre ON e LNA, Quast ingressou no LNA, de onde foi vice-diretor de 1991 a 1994. Atualmente, prestes a se aposentar, é membro da Comissão de Programas do OPD e trabalha na Coordenação de Apoio Científico na sede em Itajubá.

Carlos Alberto Torres descendo a rampa de construção do prédio principal do OAB, 1979 (Fonte: LNA)
Outro pioneiro da astrofísica brasileira oriundo do ITA é Carlos Alberto Pinto Coelho de Oliveira Torres, que nasceu em 1946 no seio de uma família tradicional mineira em Belo Horizonte. Bacharel e mestre em física pela Universidade Federal de Minas Gerais (1969/1970), mestre em astronomia pelo Instituto Tecnológico da Aeronáutica (1972) e doutor em astronomia pelo Observatório Nacional (1998), atualmente é pesquisador titular do LNA, onde trabalha desde 1989. Além disso, foi o primeiro diretor do LNA, de 1989 a 1994, logo após ter sido diretor-associado do OAB (1986-1989) e chefe do OAB (1984-1986), quando ainda trabalhava no Observatório Nacional (trabalhou lá de 1973 a 1989). Antes de ingressar no ON, trabalhou no ITA de 1971 a 1973 e na UFMG de 1966 a 1971. Da sua grande produção científica, destacam-se várias publicações, orientações, participações em bancas, apresentações de trabalho e mais de mil citações.

Torres é um dos protagonistas da história do LNA pois, além de ter desempenhado um papel ativo na efetivação do observatório de montanha, sua vida profissional, bem como a de Germano Quast, confunde-se, em parte, com a do primeiro laboratório nacional do Brasil. Apesar de não ter participado da escolha de sítio e dos instrumentos do OAB, fez parte da geração dos pioneiros da astrofísica brasileira, formados nesse período com vistas à operação do que viria a ser o Observatório Astrofísico Brasileiro.
Sylvio Ferraz Mello orientou a sua dissertação de mestrado, Variações luminosas em estrelas anãs vermelhas, e destaca o valor dessa geração de mineiros da qual Torres é oriundo:

"Houve também terreno fértil. Primeiro foram os mineiros. Todo um grupo de jovens interessados em Astronomia havia sido reunido pelos primeiros trabalhos de escolha de sítio para o Observatório Astrofísico Brasileiro. Além do apoio local, receberam um importante apoio de Muniz Barreto que, semanalmente, ia a Belo Horizonte supervisionar o andamento dos trabalhos na Serra da Piedade e em Matheus Leme. Foi para eles a primeira fonte de informação, bibliografia e incentivo. Com o início da pós-graduação no ITA começaram a migrar para São José dos Campos. Muitos deles estão na Astronomia até hoje: Janot Pacheco, Walter Maciel, Roberto Martins, Carlos Alberto Torres." (Mello, 1994, p. 34)

Segundo o Currículo Lattes, Torres atua na área de astrofísica estelar, principalmente nos seguintes temas: estrelas pré-sequência principal, estrelas jovens, lítio, associações jovens e fontes infravermelhas e de raios-X, como atesta sua tese de doutorado, já dedicada ao trabalho no LNA, O levantamento do Pico dos Dias de estrelas jovens. Lício da Silva (1994, p. 84), que orientou seu doutorado, faz uma primeira menção a Torres em seu depoimento sobre a astronomia no Brasil, revelando também a precariedade da astrofísica brasileira na época:

"Ao ingressar no Observatório Nacional, em outubro de 73, regressando de meu estágio na França, encontrei neste Instituto três astrônomos, dos quais apenas um, Jair, trabalhava em astrofísica, tendo recém terminado seu mestrado em fotometria no ITA. Meses depois, chegavam ao ON mais dois astrofísicos, que também tinham feito seus mestrados nessa instituição, que foi, no início da Astrofísica Brasileira, a grande formadora de pesquisadores do País, graças principalmente aos esforços desenvolvidos por Sylvio. Esses dois pesquisadores, Carlos Alberto e Germano, embora não trabalhassem na minha especialidade (eu continuava sendo o único espectroscopista do observatório e do País), trouxeram um novo alento ao pequeno grupo, principalmente no que tangia a nossa principal preocupação: a instalação do Observatório Astrofísico Brasileiro, atual LNA. Nessa época o telescópio já estava sendo construído e nós já estávamos às voltas com os problemas de sua instalação, a cargo do ON e, principalmente, de nosso pequeno grupo, que formávamos o que se chamava de Divisão de Astrofísica (na realidade nem esse nome tinha ainda, tendo sido criada pouco mais tarde quando da autonomia do ON). A esses jovens astrônomos – creiam-me: eles já o foram! – somavam-se dois ou três estudantes da PUC que faziam no ON suas iniciações em astrofísica."

Em 1981, quando o OAB foi inaugurado, ainda sob o vínculo com o ON, Carlos Alberto Torres era pesquisador assistente do ON, cargo que ocupou até 1983, passando em 1986 a pesquisador associado, e, em 1988, a professor titular. Em 1989, com a desvinculação entre ON e LNA, Torres ingressou no LNA, de onde, como já dissemos no início, foi o primeiro diretor, de 1989 a 1994. Atualmente é coordenador substituto da Coordenação de Apoio Científico da sede do LNA em Itajubá.

Germano Quast e Jair Barroso (de gorro) numa das expedições para escolha de sítio no Pico do Gavião, perto de São Tomé das Letras, na década de 1970. (Fonte: LNA)
Mais um pioneiro da astrofísica que estudou no ITA é Jair Barroso Jr. Ele é bacharel e licenciado em física pela UEG (1959), atual UERJ, e mestre em astronomia pelo ITA (1971), onde estudou com Germano Quast e Carlos Alberto Torres, e foi orientado por Sylvio Ferraz Mello. Mesmo antes de se formar já trabalhava como astrônomo auxiliar no ON (1956). Aposentado em 1993 pela mesma instituição, que na época estava vinculada ao CNPq (desde 1976), Barroso dedicou-se à astronomia, sobretudo à instrumentação e observação. Segundo o Currículo Lattes, seus temas principais são os seguintes: tempo astronômico (hora) através de observações meridianas, instalação e retificação de telescópios, escolha e teste de sítios astronômicos, fotometria fotoelétrica inclusive rápida, análise de curvas de luz, fenômenos mútuos entre satélites de Júpiter, ocultações de estrelas pela Lua e por outros objetos do sistema solar, ensino e divulgação da astronomia.

Das três linhas de ação do projeto astrofísico brasileiro de Abrahão de Moraes e Muniz Barreto – formação de pessoal, escolha de sítio e instrumentação – Barroso, assim como Germano Quast, participou de todas. Sobre a dissertação de mestrado de Barroso, Análise de curvas de luz de binárias eclipsantes. Aplicações à estrela BV590, Muniz Barreto dizia que era um trabalho pioneiro em astrofísica, em total sintonia com a de Germano Quast e outros, visando a preparação de pessoal para o OAB (25).

Barroso também participou ativamente da escolha de sítio para o Observatório Astrofísico Brasileiro no início da década de 1970, inclusive com responsabilidade diferenciada, como podemos ver em várias cartas, ofícios, telegramas e portarias do ON. Só para ilustrar, seguem três trechos de telegramas de 29 de maio de 1972, os únicos cujo remetente não é Muniz Barreto: 1) de Barroso para Geraldo Gomes (prefeito de Brazópolis na época) sobre bolsa do CNPq para Benedito (observador que operou a estação de Brazópolis durante todo o projeto); 2) de Barroso para Gomes: “acerto Benedito abril maio e seguintes correrá conta prof. Sylvio Ferraz vg atual supervisor trabalhos escolha de sítio pt aproveito oportunidade elogiar trabalho observador resultados coerentes fotografias satélites”; e 3) de Barroso para Mello, confirmando alguns pagamentos em Caldas e Brazópolis (incluindo Benedito) e acenando para “necessário urgente entendimento distribuição área construção pico evitar futuro irreversível problema” (26). 

Além da responsabilidade de Barroso, esses trechos revelam também a presença do observador Benedito, personagem que também participa da construção do atual LNA desde a época da escolha de sítio até a sua aposentadoria no ano passado, agora chamado carinhosamente de Sr. Dito pelos colegas. Ele também é citado em algumas passagens do relatório de Sylvio Ferraz Mello (1982, p. 16, 24): “Durante toda a realização do projeto de escolha de sítio a estação [de Brazópolis] foi operada pelo Sr. Benedito Dias de Oliveira, com excepcional cuidado e eficiência.”

No que diz respeito a instrumentos, destaca-se na produção de Jair Barroso o projeto de desenvolvimento de um fotômetro fotoelétrico rápido para o LNA – FOTRAP durante a década de 1980. Ademais, Barroso desenvolveu um espectrofotômetro de laboratório em 1980; instalou o fotômetro fotoelétrico UBV-Hbeta do Observatório da Piedade/MG em 1972; e, muito tempo antes, em 1959, instalou o telescópio newtoniano de 20cm do Colégio Anchieta, em Nova Friburgo (RJ). Escreveu vários artigos e relatórios sobre esses e outros trabalhos, e também participou de diversos eventos. Só para citar alguns: “Instrumentação astronômica no Brasil. O fotômetro rápido do LNA-FOTRAP. Notas inéditas”, no periódico Ciência & Memória do Observatório Nacional (1999); “O fotômetro ultra rápido do Observatório Astrofísico Brasileiro” na Revista de Física Aplicada e Instrumentação, como coautor (1986); e “Modernização do fotômetro rápido do LNA”, no Boletim da SAB, também como coautor (1988).

Já vimos que Jair Barroso também se interessou por ensino e divulgação da astronomia, tendo participado de eventos e publicado alguns trabalhos nessa área depois da sua aposentadoria, como “Ensinando astronomia com um coletor solar”, cujo resumo foi publicado no Boletim da SAB (2007); “A participação da astronomia brasileira no Ano Geofísico Internacional. As observações com a Câmara de Markowitz”, apresentado na XXVIII Reunião da SAB (2002); e “O ‘guarda-chuva’ e o globo de acrílico para entender o movimento aparente do céu”, apresentado no IV Encontro Brasileiro de Ensino de Astronomia (1999).

Além dos já citados, outros jovens astrônomos e meteorologistas também participaram do projeto de desenvolvimento da astronomia brasileira, sobretudo depois do encontro multi-institucional que o Eclipse de Bagé (1966) acabou propiciando. Segundo Videira & Vieira (1997):

"A oportunidade de reunir pesquisadores e instituições em torno da construção de um observatório moderno surge com o eclipse solar de Bagé (RS) em 1966. A integração da comunidade científica mostra-se fundamental para a superação de impasses financeiros, políticos e científicos. A concretização do antigo ideal ocorre 15 anos depois: é inaugurado, em 1981, em Brasópolis (MG), o Observatório Astrofísico Brasileiro, hoje Laboratório Nacional de Astrofísica."

De acordo com um dos participantes desse evento, Oscar Toshiaki Matsuura (2011), o movimento em torno do eclipse criou laços e marcou o início da necessidade de reuniões mais frequentes da comunidade. Outro participante, Paulo Marques dos Santos (1999), diz que o evento contou com equipes estrangeiras (Itália, Holanda e EUA) e foi um marco na astronomia brasileira. Germano Quast (2011) também confirma os importantes contatos que se fizeram nessa ocasião, sobretudo, em seu caso, com Abrahão de Moraes e Muniz Barreto.

Já que Oscar Matsuura foi citado, vale lembrar a proximidade da astrofísica com a radioastronomia, sobretudo na figura do CRAAM (Centro de Rádio Astronomia e Astrofísica Mackenzie), grupo que já mudou de nome algumas vezes, mas se originou na Universidade Mackenzie, passou pelo ON, INPE, USP e depois retornou à Mackenzie, única instituição privada que participou desse esforço da ciência brasileira. O chefe do CRAAM era Pierre Kaufmann, que, junto com seu grupo, construiu uma antena de 13 metros nos anos 1960 e aplicou-a a “problemas importantes relacionados à física do Sol. Durante muito tempo, ela foi o principal instrumento astrofísico que havia no Brasil.” (Maciel, 2004, p. 127). Estes são mais alguns personagens que participaram do plano de desenvolvimento da astronomia brasileira, sem o qual o LNA não teria saído do papel.


Paulo Marques dos Santos (1927), também citado anteriormente, é bacharel e licenciado em física, mas antes de se formar já trabalhava com meteorologia no IAG, de onde, posteriormente, veio a se tornar também professor, além de ter feito seu mestrado e doutorado. Distribuindo suas atividades entre a astronomia e a meteorologia, sua história se confunde com a desse instituto, onde continua trabalhando diariamente mesmo depois da aposentadoria em 1997. Escreveu um livro sobre o IAG que abarca também a história da astronomia brasileira: Instituto Astronômico e Geofísico da USP – Memória sobre sua formação (2005). Em entrevista à TV Cultura, em 2009, diz que é avesso a computadores e que se apaixonou pela astronomia na infância. Em matéria do Estado de São Paulo de 30 de agosto de 2008, “Senhor do tempo”, Marques diz que viveu por 20 anos no observatório, dividindo seu tempo entre a sala de aula e as medições meteorológicas, o que continuou fazendo quando se mudou para sua própria casa.

Em relação à história do LNA, é importante destacar que, de 1962 a 1973, Santos fez parte da comissão que estabeleceu os planos de instalação e operação do futuro Observatório Astrofísico Brasileiro. Como já sabemos, essa comissão era formada por Jean Delhaye, Jean Rösch e Roger Cayrel, além de Abrahão de Moraes e Muniz Barreto. Ademais, em seu depoimento de 1994 sobre a astronomia brasileira – “Uma avaliação histórica do Instituto Astronômico e Geofísico da Universidade de São Paulo – IAG-USP” –, Santos produz uma narrativa que relaciona bem claramente alguns personagens e acontecimentos ligados ao reingresso do Brasil na UAI, à criação da CBA e a essa primeira etapa do projeto astrofísico brasileiro:

"Em 1961 o Brasil reingressou na União Astronômica Internacional – UAI, sob a responsabilidade do CNPq, e por intermédio do Prof. Abrahão de Moraes. Por exigência da UAI, foi necessário criar um Comitê Nacional de Astronomia, que estabelecesse contactos com a mesma. Foi então criada pelo Conselho Deliberativo do CNPq a primeira Comissão Brasileira de Astronomia – CBA em 1963. A CBA era composta por Abrahão de Moraes, diretor do IAG e presidente da CNAE, e que foi eleito presidente da mesma; e os membros eleitos Lelio Itapuambira Gama, diretor do Observatório Nacional; Luiz Muniz Barreto, vice-diretor do Observatório Nacional e Fernando de Mendonça, diretor científico do CNAE. Em 1964 a comunidade astronômica brasileira mostrou-se interessada na construção de um Observatório Astrofísico Nacional, em lugar adequado, selecionado segundo as normas da UAI e a CBA tomou a iniciativa de coordenar os trabalhos. Com a colaboração do Serviço de Intercâmbio Técnico Científico do Ministério dos Negócios Estrangeiros da França, foi convidada a visitar o Brasil uma Comissão de astrônomos franceses para, em conjunto com astrônomos brasileiros, estabelecer planos relacionados com a instalação e operação do futuro Observatório Astrofísico Nacional." (Santos, 1994, p. 120-1)

Essa comissão definiu os critérios para a escolha de sítio, cujo programa iniciou-se em 1966 no Pico da Piedade, estendendo-se a Mateus Leme, Maria da Fé, Caldas e Pico dos Dias em Brazópolis, onde, em 1973, já sob a coordenação de Sylvio Ferraz Mello, decidiu-se instalar o OAB.

"Os critérios que norteariam a escolha do local adequado, tendo em vista os programas planejados, foram fixados pela comissão conjunta, e o programa da escolha de sítio foi iniciado em fevereiro de 1966, com a instalação de uma estação meteorológica experimental no Pico da Piedade, perto de Belo Horizonte, MG. O trabalho de escolha de sítio prosseguiu até o ano de 1973, tendo sido estudados vários pontos como Mateus Leme, Maria da Fé, Caldas e Pico dos Dias em Brasópolis. A partir de 1970, os trabalhos de escolha de sítio passaram a ser coordenados pelo Dr. Sylvio Ferraz Mello, e após a conclusão dos trabalhos, ficou decidido que o Observatório Astrofísico seria instalado no Pico dos Dias, onde foi realmente construído, sendo hoje o Observatório do Laboratório Nacional de Astrofísica – LNA. (Santos, 1994, p. 120-1)

Em entrevista a Antonio Augusto Passos Videira e Oscar Matsuura em 1999, Santos narra mais informalmente a sua versão da escolha de sítio para o observatório de montanha, ou “observatório de grande porte”, como se costumava dizer, e fornece alguns pormenores. Incluído na reunião meteorológica da comissão, ele lembra alguns critérios de escolha: mais ao sul possível, altitude, não longe dos grandes centros, isolamento, luminosidade, nebulosidade, temperatura, vento, precipitação e umidade adequados para o máximo possível de noites de observação, qualidade da imagem (com instrumentos específicos).
Nessa entrevista, Santos diz que eles decidiram começar instalando a estação meteorológica em Piedade, onde ficaram um ano; depois foram para Mateus Leme, pois não havia dinheiro para duas estações ao mesmo tempo. Mateus Leme tinha muita poluição por causa dos ventos, ficaram dois anos por lá. Na sequência foram para Maria da Fé (perto de Itajubá), que tinha condições muito boas, onde também ficaram dois anos. Segundo Santos, ele e Quast foram para Caldas, onde decidiram instalar a estação de Mateus Leme, mas alguém insistiu para levar o equipamento até o Pico dos Dias, então foram com tudo para lá.

Mapa da Força Aérea Americana usado na escolha de sítio. (Fonte: LNA)
De acordo com Germano Quast (2011), foi numa das expedições a Maria da Fé que Janot Pacheco e ele avistaram pela primeira vez o Pico dos Dias, que até aparecia no mapa da força aérea americana que eles usavam, mas sob uma região que estava demarcada com hachuras, ou seja, ninguém ainda o tinha visto. Avisaram essa descoberta a Muniz Barreto, e Jair Barroso é que foi investigar melhor com o prefeito de Brazópolis, dando início ao estudo do Pico dos Dias. Sobre Brazópolis, Santos é categórico: tem muita nebulosidade, todos sabiam que mesmo por lá havia picos melhores (como Maria da Fé) e é muito úmido (cheio de bananeiras!).

Santos fala também sobre os motivos que o afastaram do projeto: inicialmente era só o Muniz Barreto, mas, a partir de um certo momento, todos pareciam especialistas em escolha de sítio. Devido à constante interferência, simpatias e antipatias pessoais por um lugar ou outro, além das complicações com o Valongo, Santos afastou-se, e a decisão acabou saindo sem a sua participação e sem considerar os seus estudos.
Apesar de afastado, lembra-se perfeitamente da sequência dos acontecimentos: depois da escolha de sítio, veio o problema de construção de estrada, do equipamento e do observatório propriamente dito. Lembra-se também do imbróglio em torno da transformação do OAB em LNA, mas isto é assunto para as próximas postagens.

Já que foram mencionados os problemas com o Observatório do Valongo, da UFRJ, vejamos o que aconteceu. Para isso, voltemos à década de 1960, quando o governo brasileiro, na figura do MEC, firmou o Acordo do Café com os países do leste europeu. Esses países pagariam suas dívidas com equipamentos científicos, ou seja, a astronomia brasileira recebeu telescópios, entre outros instrumentos, em troca de café. O Valongo, especificamente, recebeu três instrumentos em 1970, um deles o telescópio Zeiss de 60cm, que acabou sendo instalado no OAB em 1983. Mas o que foi feito desse equipamento ao longo desses 13 anos? Segundo José Adolfo Campos (1994, p. 102-4), da UFRJ:

"Com a chegada dos instrumentos prevista para meados de 1970 (chegaram entre junho/70 e setembro/71), começa o processo da escolha de um sítio próprio para observações, pois a sede do Observatório do Rio de Janeiro era inadequada. Havia necessidade de se encontrar um local razoável que reunisse facilidades logísticas (proximidade com o Rio de Janeiro, estrada até o topo do morro, água e energia elétrica próximas) às condições astronômicas favoráveis (ausência de poluição luminosa, isolamento, número de noites abertas razoável, condições atmosféricas estáveis durante a noite e bom seeing), num espaço de tempo curto (cerca de um ano). A dificuldade de escolha de um sítio astronômico é notória, vide os mais de 7 anos de pesquisa feitos para a escolha do sítio do Observatório Astrofísico Brasileiro (OAB), mas dado o porte médio (para a época) dos instrumentos, não era tão crítica. Assim em 1970, após várias viagens de reconhecimento, foi escolhido o Pico dos Dias, em Brazópolis, que parecia preencher várias condições favoráveis. No início de 1971 foi instalado no Pico, junto à repetidora de televisão, um telescópio Meniscas-Cassegrain 150/2250, equipado com um fotômetro fotoelétrico, para verificação mais detalhada das condições fotométricas. No dia 14 de maio de 1971, foram lavradas as escrituras de doação do terreno de 2 hectares e 30 ares, situado no Pico dos Dias, em Brazópolis, feitas por Antonio Faria Filho e João da Costa Manso à Universidade Federal do Rio de Janeiro, para a instalação de um observatório astronômico. Em 19 de junho de 1971 foi lançada a Pedra Fundamental da Estação de Montanha com a chegada de instrumentos a Brazópolis, que contou inclusive com a presença do Dr. Sylvio Ferraz Mello. Em outubro de 1972, o Ministério da Educação e Cultura, concedeu ao Observatório um auxílio de CrS 500.000,00 para a construção da Estação de Montanha, o que gerou um edital de concorrência em 20/1/73. Parecia que o sonho de realizar-se pesquisas de mais alto nível estava prestes a se concretizar. Infelizmente a concorrência não teve um vencedor, porque o menor preço oferecido era CrS 2.300.000,00. Em virtude disto, a UFRJ entrou em negociações com o então Ministro da Educação Jarbas Passarinho, pedindo o aumento do auxílio. [...] Enquanto isso, a história tramava mais uma repetição de fatos. O Observatório Nacional, na sua busca de um sítio para a instalação do OAB, resolveu abandonar os sítios já pesquisados e em 1972 passou a interessar-se pelo Pico dos Dias. Num processo extremamente rápido, decidiu-se pela sua instalação na mesma área onde estava o terreno do Observatório do Valongo. Numa reunião em 20/7/73, presidida pelo Dr. Carlos Chagas, onde estavam presentes o Prof. José Adolfo S. de Campos, representando o Observatório do Valongo, e os Drs. Luiz Muniz Barreto e Sylvio Ferraz Mello representando o Observatório Astrofísico Brasileiro, ficou decidido que as instalações da Estação de Montanha do Observatório do Valongo ficariam “a 75 metros do cume do Pico dos Dias, local da instalação do telescópio de 1,50 m”. Na ocasião ficou marcada para outubro outra reunião (que não se realizou), quando seriam detalhados os procedimentos para administração comum da área. Foi com surpresa que, em janeiro de 1974, o Observatório do Valongo tornou-se ciente de que o terreno não mais lhe pertencia, tendo sido desapropriado junto com uma grande área, através do Decreto 73.560 de 24/1/74. Desta vez a História se repetiu com um final diferente. Sem terreno, sem diálogo e com os instrumentos precisando ser instalados, ao Observatório não restou outra alternativa senão a de procurar outra área. A escolha de um novo sítio ficou prejudicada pela delicada situação econômica que o País atravessou. A situação do Observatório estava estagnada e somente o Curso de Astronomia estava se desenvolvendo."

No livro de Muniz Barreto (1987, p. 384), encontramos esta menção ao que foi feito com um dos instrumentos que precisavam ser instalados:

"O excelente refletor de 60cm foi talvez um dos poucos instrumentos úteis que chegaram a este país nos braços do Acordo MEC-RDA. Limitando-nos ao âmbito da Astronomia devemos ficar somente com os telescópios e os planetários. [...] Ah! Os telescópios! Três deles, em uma interessante sequência de 40, 50 e 60cm de diâmetro quedaram, por muitos anos, em um galpão mal cuidado no município de Brasópolis. Aí, não foi somente a inspiração de Kafka, foi também a intervenção direta de nosso velho conhecido, o 'Drácula-Tinhoso' que, por um gesto em intenção da Comlurb (Companhia de Limpeza Urbana) transformou-os no 'lixo astronômico', no dizer da revista Veja." (27)


Nas próximas postagens veremos um pouco mais da história deste e dos outros instrumentos instalados no OAB.

(11) Fundo Lélio Gama do Arquivo de História da Ciência do MAST, LG.T.01/006, dossiê 0198/3-0203/4.
(12) Sobre a cooperação de Jean Delhaye nesse período da Astronomia brasileira, encontrei algumas cartas sobre vários assuntos, enviadas para ele por Muniz Barreto entre 1972 e 1973 no Fundo ON do Arquivo de História da Ciência do MAST. Só para citar algumas que se encontram nas caixas 47 e 48: carta de 13/01/72, de Barreto a Delhaye sobre instrumentos para OAB; carta de 31/05/72, de Barreto a Delhaye sobre projeto OAB; carta de 19/07/73, de Barreto a Delhaye sobre o projeto astrofísico; carta de 06/11/73, de Barreto a Delhaye sobre UFRJ.
(13) A tradução deste e de outros trechos em língua estrangeira são de minha responsabilidade.
(14) Fundo Lélio Gama do Arquivo de História da Ciência do MAST, LG.T.01/006, dossiê 0220/2.
(15) Barreto, 1967; 1968; 1969a; 1969b; 1969c; 1969d; 1969e; 1973; 1974; 1975.
(16) Cf. carta de agradecimento enviada a Lélio Gama. Fundo Lélio Gama do Arquivo de História da Ciência do MAST, LG.T.01/006, dossiê 0209/2.
(17) Uma cópia deste documento encontra-se no Fundo CNPq do Arquivo de História da Ciência do MAST (CNPq.T.6.7.002, dossiê sobre o OAB, 238p.), e outra na biblioteca do LNA.
(18) A Reosc era uma das três possíveis fabricantes que estavam sendo avaliadas. As outras eram a Carl Zeiss e a Perkin Elmer (Boller & Chivens Division), que acabou sendo a escolhida.
(19) Encontrei algumas dessas cartas de Muniz Barreto no Fundo ON: caixas 47 (dossiê de cartas de 1973, carta de 25/01 a Lício da Silva sobre contratação dele e do Germano Quast pelo ON); caixa 48 (dossiê de cópias de ofícios de 1972, ofício de 13/01 a Jean Delhaye sobre instrumentos, mencionando Quast e Silva); e caixa 53 (dossiê de cartas de 1971, carta 110-D de 19/11/71 a Jorge Sahade sobre instrumentos, mencionando informações negativas que Lício da Silva deu sobre instrumentos da Reosc), só para citar algumas.
(20) Como vimos, Muniz Barreto escreveu uma história do ON em 1987, que nos serve de fonte importante para a escrita deste blog.
(21) Fundo ON do Arquivo de História da Ciência do MAST, caixa 45, dossiê do OAB.
(22) Fundo ON do Arquivo de História da Ciência do MAST, caixa 53, dossiê de cartas de 1971, carta 122-D de 17/12/71, de Barreto para Pacheco.
(23) Cf. documento publicado no site do LNA: Elaboração de estratégias para o futuro do OPD: resultados das discussões dos grupos de trabalho, fevereiro de 2011, 69p.
(24) Fundo ON do Arquivo de História da Ciência do MAST, caixas 47-53.
(25) Cf. carta de Muniz Barreto a Manoel da Frota Moreira (diretor-geral do DTC do CNPq), de 10/02/72, que se encontra depositada no Fundo ON do Arquivo de História da Ciência do MAST, caixa 48, dossiê de cartas de 1972.
(26) Fundo ON do Arquivo de História da Ciência do MAST, caixa 51, dossiê de telegramas de 1972.
(27) Encontrei também outras fontes sobre esse caso. Além da mencionada matéria que saiu na Veja, intitulada “Lixo astronômico”, no Fundo ON do Arquivo de História da Ciência do MAST há alguns documentos que mencionam o problema com o Valongo. Por exemplo, na caixa 48, o ofício 53 e a carta de 31/05/72; e na caixa 47, as cartas de 17/07/73 e 6/11/73. Todos esses documentos foram escritos por Muniz Barreto, dois destinados a Jean Delhaye, e dois a Geraldo Gomes (prefeito de Brazópolis).

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