1.1 - Sonhos e sonhadores

O sonhador Domingos Fernandes da Costa (Fonte: site do ON)

Domingos Fernandes da Costa  (1882-1956), ou “comandante Costa”, como era conhecido no Observatório Nacional (ON), ingressou na instituição em 1909, quando ela ainda funcionava no Morro do Castelo, e lá permaneceu trabalhando mesmo depois de aposentado (1954) até seu falecimento (2). Ele gostava de orientar os estudantes na carreira científica e deixou muitos seguidores.


Dentre suas várias atividades, o site do ON registra as seguintes (em ordem cronológica): de janeiro a junho de 1910 dedicou-se à observação de diversos cometas, dentre os quais o cometa Halley; de outubro de 1910 a setembro de 1911 refez o levantamento magnético da bacia do rio São Francisco; em 1919 participou da Comissão para a observação do Eclipse de Sobral; em 1921 iniciou importante série de medidas micrométricas de estrelas duplas usando a luneta equatorial de 21cm de abertura; de 1924 a 1926, as medidas foram feitas com a equatorial 46cm (apesar das condições atmosféricas desfavoráveis, fez 350 medidas, cujos resultados, incluídos no catálogo geral para o Hemisfério Sul, foram considerados como importante contribuição do ON no campo da astronomia); em 1925 observou na luneta astrográfica equatorial de 46cm de abertura os cometas Reid e Ensor para determinar a posição desses astros; nos anos 1930 propôs a Sodré da Gama a criação de um Curso de Astronomia dedicado à preparação de profissionais para o ON (que não foi aceito pelo ministro da Educação e Saúde, sendo retirado do Regimento de 1940); em 1951 dirigiu interinamente o ON por um mês; sua última pesquisa foi dedicada à Sismologia.

Para o que nos interessa – a história do LNA –, é importante registrar que Costa elaborou o projeto de construção do “observatório de montanha”, encaminhado por Sodré da Gama ao ministro Gustavo Capanema e ao presidente Getúlio Vargas em 1936, mas cuja execução foi interrompida pela Segunda Guerra. Segundo Lélio Gama (1977, p. 12), “Domingos Costa levantou o projeto de instalação de um observatório astrofísico regional” na Serra da Bocaina. Ainda segundo Gama (ibid.), o equipamento científico foi escolhido por Costa depois de discussões com um especialista da Casa Zeiss (grupo internacional de empresas da indústria óptica e optoeletrônica), que acabou declinando do compromisso devido à eclosão da guerra.

Vale lembrar que a ideia de construir um observatório em local de clima ameno já vinha de décadas passadas. A preocupação com o local apropriado para um observatório era até mais antiga, porém fiquemos em 1888, quando, depois de muita insistência de seu diretor Luiz Cruls (Moraes, 1994, p. 143), o ON conseguiu 40 hectares da Imperial Fazenda de Santa Cruz, doados por Pedro II, que também “ofereceu uma quantia em dinheiro para que os trabalhos de saneamento e preparação do terreno pudessem ser iniciados” (Videira, 2007, p. 33). Com isso, Cruls pretendia que o ON desse um enorme salto em suas pretensões científicas, investindo na astronomia como ciência pura e participando do projeto internacional da Carta do Céu. O então Imperial Observatório deveria ter sido transferido para lá; no entanto os créditos, já votados e aprovados pelo parlamento, não foram entregues à instituição. Além disso, a Proclamação da República dificultou ainda mais a situação, já que a nova imagem do regime, sobretudo positivista, privilegiou o utilitarismo em vez da ciência pura, adiando as pretensões de Cruls para outro momento (ibid.).
Henrique Morize (1860-1930), diretor do ON com quem Costa trabalhou na expedição do Eclipse de 1912 em Passa Quatro (Barreto, 1987, p. 173), também se preocupou com um local mais apropriado para o observatório e, em 1921, conseguiu transferi-lo do Morro do Castelo para o de São Januário, ainda que a capital não fosse sabidamente o local mais conveniente (Moraes, 1994, p. 145). Segundo Luiz Muniz Barreto (1987, p. 201), que, além de diretor do ON em duas ocasiões (1968-1979, 1982-1985), também foi aluno de Costa:

"Domingos Costa, que vivera a mudança para São Cristovão e cujo otimismo e vontade o levavam a grandes vôos científicos, sabia que só fora do Rio de Janeiro poderia o Observatório Nacional realizar completamente o seu destino de observatório de nível internacional. [...] [Costa sabia que] só uma reformulação completa da instituição, em sua estrutura administrativa, em seu quadro de pessoal, a implantação de novos observatórios magnéticos, e principalmente, a instalação de um observatório em local de clima ameno, poderia satisfazer os destinos do antigo instituto. Autorizado por Sodré da Gama, Costa lançou-se ao trabalho e, entrando em contacto com observatórios estrangeiros e com as mais afamadas firmas especializadas em instrumentos científicos, preparou um magnífico projeto. [...] A “Reforma do Observatório Nacional” consistia [em vários pontos, dentre eles]: [...] Instalação de um Observatório de Montanha."

Muniz Barreto (1987, p. 202) continua:

"Pelo que ouvi de Domingos Costa, a escolha [de sítio para o observatório de montanha] definitiva recairia na Serra da Bocaina, pois o meu saudoso mestre sempre se referia ao seu sonhado observatório como o Observatório Astronômico da Bocaina, o OAB, sigla que, por um desses caprichos do destino, viria caracterizar, 40 anos depois, a materialização de seu Sonho com o Observatório Astrofísico de Brasópolis (OAB), ou como foi inicialmente chamado, Observatório Astrofísico Brasileiro, também OAB."

Sobre a possibilidade de retomada do projeto após a guerra, Muniz Barreto (1987, p. 275) diz:

"Em 1945, o sonho de Costa de ver instalada a sua “estação de montanha” parecia ter sido sepultado para sempre. [...] Certa vez, conversando com Costa, notei um brilho diferente em seus olhos, e um sorriso que denunciava algo de muito bom. Com a minha ingenuidade dos vinte anos, perguntei-lhe se a sua alegria se relacionava com a renovação do país e com a democratização do Mundo, após a derrota do nazismo. [...] 'Estou alegre por um motivo muito mais importante: apareceu agora uma pequena possibilidade de que a estação de montanha possa voltar a ser cogitada. O dr. Sodré esteve com o ministro, o [Ernesto de] Souza Campos, e mostrou-lhe o artigo do nosso Regimento que fala naquela estação.'”

A necessidade de formação de pessoal em astrofísica já era preocupação de Costa, e, sobre isso, Muniz Barreto (1987, p. 291) descreve um pequeno diálogo com seu mestre:

"Um dia, entretanto, ele [Costa] sussurrou-me que não estava satisfeito com o programa [do curso], pois não havia um só item reservado à Astrofísica. Talvez com receio de magoar o seu amigo e diretor [Sodré da Gama], ele me disse baixinho: 'nada está previsto para a realização do meu Sonho: ter gente para operar o futuro Observatório de Montanha'. Tive a audácia de responder: 'Isso a gente aprende depois, pois vamos fazê-lo já como astrônomos do Observatório Nacional.'"

Anos depois, em 1955, já sob direção de Lélio Gama, o ON vivia tempos auspiciosos semelhantes aos de Liais e Cruls, mas, segundo Muniz Barreto (1987, p. 292), Costa achava que:

"Para que aquela alegria pudesse ser completa, só faltava o renascimento do Sonho, a concretização do quase esquecido 'Observatório de Montanha'. Um certo dia, indaguei do 'Comandante' o porquê daquela aparente omissão. Com a serenidade e o bom senso que lhe eram próprios, Costa esclareceu-me que ainda era cedo para aquela ressurreição. Era preciso, em primeiro lugar, organizar as linhas de trabalho para as quais o observatório já estava preparado e tinha algum pessoal para obter resultados concretos e de valor científico. [...] Costa julgava que, antes de ingressar naquela 'aventura de Sonho' era preciso, ainda, desenvolver os dois pontos que faltavam na área da Geofísica: a Sismologia e a Gravimetria. Por isso, ele concordava inteiramente com a orientação que Lélio imprimia ao Observatório."

Costa faleceu em 1956 antes de ver seu sonho realizado, mas seu pupilo, Muniz Barreto, retomou-o nos anos 1960 junto com outros personagens da história que aqui se tece. Mas antes de nos determos nessa “retomada”, é importante conhecermos um pouco mais sobre o diretor do ON na época do sonho do comandante: Sodré da Gama.

O sonhador Sodré da Gama (Fonte: site do ON)

Sebastião Sodré da Gama (1883-1951) formou-se em Matemática e foi professor de Mecânica Racional da Escola Politécnica e de dois colégios cariocas. Incentivou o desenvolvimento sistemático de levantamentos magnéticos, implantou 26 estações magnéticas em 3 anos (1927 a 1930), e, em 1931, já como diretor do ON, iniciou essa atividade no Pará. A propósito, o primeiro planetário da Região Norte, considerado um dos mais modernos do Brasil, foi fundado em Belém, em 1999, e chama-se Planetário Sebastião Sodré da Gama.

Dentre as várias atividades de Sodré da Gama como diretor entre 1930 e 1951, o site do ON registra as seguintes: procurou colocar-se como administrador da instituição, tendo sido responsável pela pavimentação da rua que circunda o campus, pela construção do depósito e da oficina, pela sala do Grupo Gerador da Sala da Hora e pela maioria das residências dos funcionários; ademais, manteve a periodicidade de todas as publicações do Observatório, e o Serviço da Hora foi reconhecido pelo Serviço Internacional de Longitudes como estação fundamental da Hora no Hemisfério Sul; apesar do corte orçamentário devido à crise gerada pela Segunda Guerra Mundial, manteve as atividades do Observatório, foi o responsável pelo Regimento de 1940, que reestruturou o ON e possibilitou a ampliação do quadro de funcionários, uma antiga reivindicação de todos os diretores anteriores; e, em 1949, iniciou o estudo das irregularidades do longo período de rotação da Terra, com as observações de ocultações de estrelas pela Lua, em colaboração com o Observatório de Greenwich.

Para a história – ou pré-história – do LNA, interessa-nos lembrar que, em 1936, Sodré da Gama apresentou ao governo federal – e conseguiu que fosse aprovada – a proposta de Domingos da Costa para a construção de um observatório astrofísico na Serra da Bocaina, o “observatório de montanha”. Como já dissemos antes, para dar andamento ao projeto, Gama chegou a encomendar instrumentos da empresa Carl Zeiss, mas a instalação do observatório de montanha foi interrompida pela Segunda Guerra. No entanto, no regimento do ON de 1940 (p. 3), Sodré da Gama conseguiu inserir um pouco do sonho de Domingos da Costa: a astrofísica e a cooperação internacional como seus objetivos, e o observatório de montanha – a ser construído – como uma de suas instalações:

"Art.1º. O Observatório Nacional (ON) [...] tem por fim: a) Realizar pesquisas em astronomia, geodésia, geofísica e astrofísica; b) Executar programas de observações astronômicas, magnéticas, sismológicas e gravimétricas, afim de contribuir para o desenvolvimento cultural do país e de cooperar com os observatórios estrangeiros para o desenvolvimento da ciência, especialmente no que possa interessar ao Brasil; [...] Art.3º. O Observatório Nacional será constituído das seguintes divisões: [...] b) Divisão de serviços equatoriais e correlatos, cujas atividades se exercerão em dois observatórios, sendo um deles o que se acha instalado no Distrito Federal, e o outro a ser instalado em montanha."

De acordo com Muniz Barreto (1987, p. 194), “Sodré da Gama iniciou a sua gestão [como diretor do ON] sob a inspiração deste notável legado de Morize e imaginou ampliá-lo com um empreendimento que seria a maior realização do Observatório Nacional: o que então se chamava de Observatório de Montanha.” Além disso, numa conversa em 1945, Gama afirmou o seguinte (Barreto, 1987, p. 269):

"Eu não creio que, no Brasil, se possa fazer muita coisa com relação aos interesses científicos do Costa, pois, para isso, seria preciso que tivéssemos um grande observatório, fora do Rio de Janeiro, com moderno telescópio. [...] Entretanto, embora eu considere o Costa como um sonhador, não o desencorajo e, sempre que possível, eu atendo os seus pedidos para umas tentativas de fazer experiências com a Física dos astros. Ele ainda pensa em reviver o Sonho que juntos tivemos antes de 1939. [...] O Costa preparou um belo projeto de instalar uma Estação de Montanha na Serra da Bocaina, com um telescópio Zeiss que teria um espelho com um diâmetro da tua altura. [...] O Costa irá contar-te as minúcias daquele Sonho que já foi sepultado para sempre. Por isso quero te explicar o meu ponto de vista que é o mais realista. [...] O grande perigo será o Costa envenenar todos vocês, e embuti-los em seu Sonho."

Mas era tarde demais, Muniz Barreto já estava “envenenado”, tendo sido o responsável, junto com Abrahão de Moraes, mais de uma década depois, pela retomada do sonho de Domingos da Costa. Mas antes de nos determos em Abrahão de Moraes e Muniz Barreto, passemos a Lélio Gama, ex-colega do comandante Costa que, anos depois, já na posição de diretor do ON, deu todo apoio à “retomada”.

O sonhador Lélio Gama (Fonte: site do ON)

Lélio Itapuambyra Gama (1892-1981) estudou na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, onde se graduou em Engenharia Geográfica (1914) e em Engenharia Civil (1918). Seguiu carreira docente na mesma instituição, tornando-se professor assistente nas disciplinas de Cálculo Variacional e Mecânica Racional (1925). No ano seguinte obteve a livre-docência em Mecânica Racional na Escola Politécnica. Três anos depois, ainda na Politécnica (onde ficou até 1949), obteve a livre-docência em astronomia, Geodésia e Construções de Cartas Geográficas; em 1938 tornou-se professor catedrático de Mecânica Racional. Gama também foi professor catedrático de Análise Matemática e Análise Superior na Escola de Ciências da Universidade do Distrito Federal (1935-1937); e professor de Análise Matemática do Departamento de Matemática da Faculdade Nacional de Filosofia, da Universidade do Brasil (1939-1940).

Além das universidades, Lélio Gama teve atuação destacada na fundação de novas instituições científicas, como o CNPq e o IMPA, só para dar alguns exemplos; participou de conselhos editoriais de periódicos nacionais e internacionais; atuou em conselhos e comitês técnico-científicos; foi membro de sociedades científicas, entre outras atividades.

A carreira de Lélio Gama no ON, segundo o site institucional, iniciou-se em 1917 como calculador interino; em 1919, Gama foi designado para servir como membro da expedição científica de observação do eclipse total do Sol, deslocando-se para a cidade de Sobral, no Ceará; em 1921 foi efetivado no cargo de calculador, sendo também nomeado assistente interino; tornou-se astrônomo do ON em 1937; foi chefe da Divisão de Serviços Meridianos do Observatório Nacional de 1946 a 1951; na sua gestão como diretor do ON, de 1952 a 1967, Gama reativou o programa de Sismologia do instituto, instalando um sistema tríplice de novos sismógrafos (1957); e, também nesse mesmo ano, por ocasião do Ano Geofísico Internacional, iniciou, junto com Abrahão de Moraes, diretor do IAG-USP, uma parceria histórica que viria a ser a condição de possibilidade para a existência do nosso objeto de estudo, o Laboratório Nacional de Astrofísica.

Ademais, Lélio Gama, foi um dos colegas de Domingos da Costa que se entusiasmaram, no final dos anos 1930, com o seu projeto de reformulação do ON, que incluía a instalação do observatório de montanha. Talvez por isso, no início dos anos 1960, Lélio Gama tenha colaborado com Muniz Barreto no projeto de cooperação científica que visava, entre outras coisas, a instalação do observatório astrofísico brasileiro. No entanto, em carta a Antonio Couceiro de 03/07/61 (3), Gama demonstra reservas:

"O exame, também sugerido, da possibilidade de construção de um novo observatório com aparelhamento moderno deveria, a meu ver, ser protelado até que a consolidação e o desenvolvimento das atividades atuais, e, sobretudo, a formação de astrônomos em cursos de responsabilidade, como o que se propõe criar em São Paulo, assegurem melhores perspectivas de êxito a tão caro empreendimento."

Reservas essas que não o impediram de apoiar o projeto, mas que foram retomadas em carta a Abrahão de Moraes de 17/03/64 (4):

"Aguardo notícia sobre o projeto do observatório astrofísico e andamento do respectivo processo no CNPq. [...] Eu disse aos profs. [Jean] Delhaye e [Roger] Cayrel (5) que faria tudo o que me fosse possível para uma atitude favorável do CNPq com relação à execução do seu projeto. Disse-lhes também que julgava de meu dever não silenciar ao conselho as ligeiras reservas que tenho, no momento, sobre o êxito final do projeto. [...] Desejo sinceramente que o futuro não as justifique."

Em 1967, com a aposentadoria compulsória de Gama, Muniz Barreto assumiu a direção do ON, dando continuidade à cooperação científica com o IAG-USP iniciada por Lélio Gama e Abrahão de Moraes em 1957 no Ano Geofísico Internacional. E já que mencionamos Moraes, vejamos um pouco da sua biografia.

O sonhador Abrahão de Moraes (Fonte: site do ON)

Abrahão de Moraes (1917-1970) graduou-se em Física na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo em 1938, e obteve o título de livre docente e doutor em ciências na Escola Politécnica em 1945. Dedicou-se ao ensino na USP, lecionando Mecânica Racional, Mecânica Analítica, Mecânica Celeste e Física Matemática. Em 1949 assumiu a chefia do Departamento de Física, mesmo ano em que participou da fundação da Associação de Amadores de Astronomia de São Paulo; e em 1955 foi escolhido para dirigir o IAG, posição que ocupou até o seu falecimento. Em 1972 foi inaugurado o observatório astrométrico do IAG, em Valinhos, que hoje se chama Observatório Abrahão de Moraes.

O reconhecido interesse de Abrahão de Moraes pela astronomia levou-o a ser convidado para escrever o capítulo “A astronomia no Brasil”, do livro As ciências no Brasil, de  Fernando de Azevedo, publicado em 1955, um dos textos fundadores da história da astronomia brasileira. A escrita desse capítulo lhe ofereceu uma perspectiva mais ampla da astronomia no Brasil, que, para ele, só poderia prosperar com a construção de um observatório numa região adequada e com a cooperação científica. Nas suas considerações finais, Moraes (1994, p. 160) escreveu:

"Para que possa nosso país cooperar eficazmente para o progresso da astronomia, mister se faz a ereção de um observatório, ou a transferência de um dos existentes para uma região de clima mais propício, afastada dos grandes centros urbanos. Torna-se ainda necessário atrair para nosso meio alguns astrônomos de grande capacidade e enviar aos grandes estabelecimentos europeus e americanos, nossos jovens que se interessem pelos estudos astronômicos. Procedimento semelhante, empregado em outros domínios científicos, conduziu já a resultados altamente compensadores."

Para levar isso a cabo, segundo o site do IAG, “uma de suas prioridades foi dar apoio e orientação inicial a pesquisadores jovens, os mesmos que anos mais tarde constituiriam os primeiros grupos de pesquisa em astronomia dinâmica, astrometria e astrofísica de nosso país. Esses grupos, depois da transformação do IAG em unidade de ensino, formaram o Departamento de Astronomia do IAG”. Segundo um desses então jovens astrofísicos (Maciel, 2004, p. 140), Abrahão de Moraes foi o “pai da astrofísica brasileira”, apesar de nunca ter sido astrônomo. “Ele é que teve a visão de juntar alguns estudantes muito bons e mandá-los para a França, para fazer doutoramento. Os estudantes voltaram e passaram a plantar a sementinha. A sementinha está aqui.”

Além disso, Abrahão de Moraes orientou as atividades do instituto no Ano Geofísico Internacional; coordenou a atividade de registro das passagens do Sputnik I e do Explorer I; incrementou o investimento na biblioteca do instituto; e, junto com o já mencionado professor Jean Delhaye, elaborou um plano para obter instrumentos para o trabalho astronômico.

O site do IAG ainda destaca uma vasta atividade científica, docente e política de Abrahão de Moraes: entre 1959 e 1967 representou o Brasil no comitê técnico da Comissão do Espaço Cósmico da ONU; em 1967 foi aprovado para a cátedra de Cálculo Diferencial e Integral da Escola Politécnica da USP, que foi transferida, após a reforma universitária de 1969, para o Instituto de Matemática e Estatística; de 1965 a 1970 presidiu o Grupo de Organização da Comissão Nacional de Atividades Espaciais (hoje INPE) em São José dos Campos, SP.

No texto “O desenvolvimento da astronomia no Brasil” (6), Abrahão de Moraes (1961) descreve o estado da astronomia brasileira na época e o que era preciso fazer para ir além, já apresentando um orçamento do programa para instalação do OAB:

"No Instituto Tecnológico da Aeronáutica, com a cooperação inicial do Instituto Astronômico e Geofísico e do Observatório Nacional, surgiu um grupo de pesquisadores em astrofísica, que iniciou o trabalho com o refletor da instituição e se transformou no núcleo pioneiro da pesquisa em astrofísica, que se deverá constituir na semente humana do futuro observatório astrofísico. Uma ajuda e o apoio a este grupo reverterá, sem dúvida, em benefícios imensos ao plano geral do desenvolvimento da astronomia no Brasil, e será a garantia do funcionamento do futuro observatório. [...] É certo que ao futuro observatório astrofísico deverão ter acesso todos os astrônomos brasileiros, e deverá ser dada a oportunidade a que astrônomos estrangeiros desejosos de trabalhar no céu do hemisfério sul possam nele realizar pesquisas, trazendo ao nosso país a riqueza de sua experiência." (7)

Além da escolha de sítio e da aquisição de equipamento, podemos ver, por esses documentos, que a formação e estabilização do pessoal também foram priorizadas, e tudo isso sob os augúrios da cooperação científica nacional e internacional. Vale lembrar a solicitação de reingresso do Brasil na IAU, feita por Abrahão de Moraes, durante a 11ª Assembléia Geral, em Berkeley, de 15 a 24 de agosto de 1961.

Em 1964, junto com Muniz Barreto, Abrahão de Moraes iniciou formalmente a parceria entre ON e IAG com vistas à instalação de um observatório astrofísico brasileiro, iniciativa que também contou com a ajuda de uma comissão francesa da qual faziam parte Jean Delhaye, Jean Rösch e Roger Cayrel, que conheceremos melhor mais adiante. Sobre as origens dessa parceria, Barreto (1987, p. 243) menciona uma conversa sua com Moraes:

"Iniciava-se o ano de 1964, e o clima político do país não era dos mais tranquilos. A agitação nos vários segmentos em que se dividira a sociedade brasileira iria, forçosamente, afetar o trabalho científico de um modo geral e, em particular, ao nosso sofrido e calejado Observatório Nacional. Entretanto, o Sonho já havia renascido, qual Fênix rediviva. Desde 1961, eu já alimentava a esperança de que aquele simples artigo no Regulamento do ON de 1940 pudesse se tornar realidade. Naquela íngreme estrada de acesso ao Observatório de Palomar eu tivera, com Abrahão de Moraes, uma conversa de extraordinária importância para a História da Astronomia Brasileira. Ali, a mais de mil metros de altitude, falamos, pela primeira vez, na instalação do OAB: Observatório Astrofísico Brasileiro. Ali, já tivéramos consciência das dificuldades que iriam aparecer no futuro e, por isso mesmo, dividimos as tarefas a serem cumpridas."

Essas tarefas foram assim distribuídas: cabia ao IAG a função de orientar e fomentar a formação de técnicos e pesquisadores; e ao ON a função de providenciar a escolha do local e a aquisição dos instrumentos apropriados para a construção de um observatório astrofísico. Ainda sobre essa conversa com Moraes, segue Barreto (1987, p. 324):

"Era o Sonho que renascia. Faltava somente discutir a localização daquela quimera que, na boca dos dois sonhadores, já era uma realidade concreta, um projeto em marcha. [...] Eu acreditava e, naquela ocasião disse que tinha certeza, de que os trabalhos para escolha de sítio iriam atrair muitos jovens e, assim, desvendar vocações. [...] Abrahão, com um gesto tranquilo, acalmou-me: 'Sossega, que vais ter um OAB, seja lá onde for, pois será o Observatório Astrofísico Brasileiro.""

Muniz Barreto, que foi o responsável pelos trabalhos iniciais de escolha de sítio, tomou a dianteira do projeto após o falecimento de Moraes, e o levou a cabo, sendo um dos principais responsáveis pelo aparecimento daquilo que hoje é o LNA. Detenhamo-nos mais atentamente nesse personagem.

O sonhador Muniz Barreto (Fonte: site do ON)

Luiz Muniz Barreto (1925-2006), ou o “homem da lua”, como era chamado por Israel Pinheiro (governador de Minas Gerais de 1966 a 1971), ingressou no ON em 1945 como estagiário, instituição da qual veio a ser diretor de 1968 a 1979, e novamente de 1982 a 1985. Em 1987 publicou um livro sobre a história do ON – Observatório Nacional: 160 anos de história –, que é também um livro de memórias, já que sua vida se confunde com a da “repartição”, como ele denominava às vezes o Observatório. Cronista de escrita sedutora e pormenorizada, Barreto registrou nesse texto o seu testemunho, privilegiado por ser um de seus protagonistas, da história do ON e da astronomia no Brasil desde os anos 1940 até os anos 1980 do século XX. A análise dos documentos administrativos da sua gestão, além de confirmarem a sua narrativa, demonstram a necessidade que ele tinha de registrar minuciosamente cada um de seus passos em cartas, projetos e relatórios, só para citar alguns tipos de documentos examinados. (8)

Sobre a formação e atuação profissional de Muniz Barreto, no site do ON destacam-se as seguintes: formou-se em Engenharia Civil e Elétrica em 1949 pela Escola Nacional de Engenharia, e em Física pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade Estadual da Guanabara (1959), atual UERJ; doutorou-se em ciências, nas áreas de Mecânica Racional e Mecânica Celeste em 1962, tornando-se livre-docente de Mecânica Geral pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, em 1963; atuou em várias universidades no país e no exterior, como na UERJ, de onde também chegou a ser sub-reitor de pós-graduação e pesquisa. Além disso, participou de diversas sociedades científicas, como a Societé Astronomique de France, a SBPC e a União Astronômica Internacional, só para citar algumas; e foi responsável pela formação de importantes grupos de pesquisa científica no Observatório Nacional, no ITA e na Universidade Federal de Minas Gerais.

Para a história do LNA, interessa sobretudo essa última atividade de Barreto, tendo em vista as três vertentes de ação relatadas por ele no “Projeto sobre o desenvolvimento da Astronomia no Brasil”: formação de pessoal, aquisição de instrumentos e escolha de sítio para o observatório astrofísico brasileiro. Tudo isso estava presente na sua proposta de reformulação do ON feita durante a gestão de Lélio Gama. Além dessas três linhas de atuação, Barreto destaca a necessidade do estabelecimento de uma cooperação científica nacional e internacional, e passa a trabalhar para efetivá-la. Nesse projeto de 1976, que é mais um relatório do que propriamente um projeto, Barreto descreve passo a passo tudo o que havia sido feito até então com o fito de construir o “observatório de montanha”. Vejamos alguns trechos desse documento até hoje inédito, que serve de apresentação para a próxima seção (9):

"Os recursos instrumentais adequados para a implantação da astrofísica óptica eram imprescindíveis, pois nada houvera sido feito até então, nesse sentido. Existiam 3 problemas a serem resolvidos: a formação de pessoal, a escolha do sítio adequado à instalação de um novo observatório e a aquisição de equipamento.

Além da ligeira superioridade astroclimática de Brasópolis sobre Caldas, os outros fatores de apoio logístico e de facilidades de construção vieram a confirmar a escolha.

Logo após a escolha definitiva de Brasópolis, iniciamos os entendimentos para a construção da estrada. Com a cooperação do Observatório Nacional, o DNER efetuou a exploração locada daquela via de acesso, o que revelou que a estrada provisória existente tem um traçado inadequado às condições técnicas exigíveis. Com o apoio do MEC e do CNPq encaminhamos ao Ministério dos Transportes a solicitação para a construção da estrada, do que resultou o decreto no. 13795, de 11/03/1974, que determinou ao DNER construir uma estrada pavimentada com 6m de largura e 2m de acostamento, com rampas máximas de 10% e raios de curva mínimos de 30m.

Um outro problema administrativo que apresentou dificuldades imprevisíveis foi o da liberação da área do pico. Naquele local existiam antenas de retransmissão de TV que serviam a uma grande área do sul de Minas Gerais. [...] Todas essas dificuldades [as antenas, que produziam interferência eletromagnética, pertenciam à Assumitel, que as vendeu à Coetel, que, por sua vez, já tinha vendido cotas de telecomunicação às prefeituras do sul de MG] fizeram com que, somente em fevereiro de 1976 fosse solucionado o problema. Isto não afetou o cronograma geral do projeto, pois o problema da construção da estrada o sobrepujou.

[...] Após o estabelecimento genérico do programa de pesquisa [...] foram estabelecidos os parâmetros principais do instrumento principal do novo observatório. [...] No decorrer da execução do projeto, as outras características foram sendo definidas e, em alguns casos, foram feitas modificações subsequentes, sugeridas por motivos econômicos e para melhoria do rendimento técnico. [...] Foi constituído um grupo de trabalho com pesquisadores do ON, IAG/USP, ITA e CRAAM. Os pesquisadores do ON, Germano Rodrigo Quast, Ronaldo R. F. Mourão e L. Muniz Barreto foram à Europa e EUA, onde visitaram fábricas que apresentaram propostas e observatórios onde existem, em funcionamento, telescópios daquelas fábricas. À vista dos relatórios desses pesquisadores, adicionados às informações de astrônomos daqueles e de outros observatórios não visitados, foi escolhida a firma The Perkin Elmer Corporation, Boller & Chivens Division, California, EUA, para construir o telescópio.

Logo após a escolha de Brasópolis como sítio para a instalação do novo observatório, iniciamos o programa de desenvolvimento do sítio [...] e contamos com a cooperação de vários especialistas no assunto e que já orientaram ou participaram de empreendimentos análogos nos EUA, França, Chile, Hawaii, Israel, Argentina.

O traçado definitivo [da estrada] foi alterado 3 vezes, visando maior economia na construção [...]. O processamento administrativo da concorrência pública para a execução das obras foi muito demorado [...]. Lamentavelmente, o contrato com a firma ganhadora da licitação [...] só se concretizou em fins de 1975 [...]. O início físico das obras ocorreu em fevereiro de 1976, com um ritmo auspicioso. Esse ritmo, entretanto, diminuiu e, dos 14km de traçado, nos fins de março de 1976, somente 4km foram abertos.

[Questões sobre água, luz, telefone e outras obras de apoio, como cerca com moirões de concreto para evitar] pequenos problemas locais, como a invasão de cabeças de gado, além da preservação da pequena fauna local [e] prédio com 4 cômodos [para servir de alojamento durante a construção].

Para acompanhar a execução do projeto havíamos elaborado um plano que se baseava em 3 viagens de inspeção à fábrica, de parte de pesquisadores brasileiros, e relatórios mensais elaborados por pesquisadores americanos de grande experiência, residentes na área de Los Angeles, que poupariam muitos deslocamentos do Brasil.

[Devido à morte e/ou doença e/ou trabalho intenso dos colaboradores estrangeiros Ira Bowen, Jorge Landi-Dessy, Bruce Rule e Kitt Peak National Observatory] Efetuaram inspeções na fábrica os seguintes pesquisadores brasileiros: L. Muniz Barreto, G. Rodrigo Quast, P. Mourilhe Silva e Ivan Mourilhe Silva. O engenheiro Larry Burris, da Boller & Chivens, esteve duas vezes no Rio de Janeiro, em intervalos de visitas de brasileiros à fábrica.

[Sobre o material de espelhos e demais partes ópticas, escolheram-se a sílica fundida para os espelhos menores e o Cervit-C para o espelho principal. Sobre a montagem de suporte do telescópio] [...] Foi escolhida a montagem alemã assimétrica modificada, designada de “cross-axis” por Boller & Chivens.

Assim, o nosso telescópio de 1,60m passa a ser o 1º refletor com essas dimensões em montagem alemã assimétrica. Devemos ressaltar, aqui, a originalidade dessa escolha, que fornece uma solução econômica e tecnicamente vantajosa para um grande refletor [...]. O sistema de acionamento mecânico do telescópio [...] só foi completado em 1974 durante a visita do pesquisador Germano R. Quast à fábrica.

Em março de 1976, a montagem estava completa e com os testes finais aprovados [...]. A parte elétrica, incluindo console de controle, estava completa e testada. A óptica estava ainda em fase de execução [...], o que está previsto para ser completado em agosto de 1976, quando deverão ser feitos os testes de aceitação da óptica.

O espectrógrafo Coudé será, ao menos nos primeiros anos de operação do novo telescópio, o equipamento periférico de maior importância. [...] O número de telescópios em operação dotados de equipamento que permite a pesquisa espectroscópica de longo foco é muito pequeno [...]. Dessa forma, na escolha desse equipamento complementar de observação, levamos em conta o aspecto da originalidade da pesquisa e da competição internacional.

[...] Permitindo a espectroscopia de média ou baixa dispersão, ele se aplica a outras linhas de pesquisa [...], a estudos qualitativos de estrutura geral do espectro e suas linhas [...] [viabilizando] a espectroscopia de objetos fracos, com tempos de pose muito inferiores [aos do sistema Coudé], possibilitando não só trabalhos de “survey” e classificação, como uma produção quantitativamente maior.

Como uma das consequências possíveis do projeto [que contou com acordo de cooperação bilateral CNPq-CNRS], podemos citar a possibilidade da construção de outros instrumentos do mesmo tipo, para o uso de observatórios brasileiros e latino-americanos. Esse projeto, desse modo, torna-se independente do projeto do observatório astrofísico, e como um de seus resultados.

[Em relação à cúpula, após uma série de problemas operacionais, embaraços e atrasos] Em 06/01/75 [...] fechamos o câmbio dentro das normas legais. Em setembro de 1975, o pesquisador do ON, Germano Rodrigo Quast, foi à fábrica de Observe-Dome, em Jackson, Mississipi, para testar a cúpola (sic). [...] No dia 22/11/75, a cúpola chegou ao Rio de Janeiro por via marítima. [...] A cúpola encontra-se embalada e perfeitamente acondicionada nas dependências da sede do ON no Rio, aguardando o término da construção do prédio, em Brasópolis, para a sua instalação."

Veremos, na sequência, cada uma dessas etapas, bem como os personagens mencionados, mas já se pode perceber o protagonismo de Muniz Barreto na aquisição do maior telescópio que há hoje em território brasileiro, que se encontra no atual Observatório do Pico dos Dias (OPD), e de toda a estrutura que foi desenvolvida concomitantemente ao longo dos anos 1960 e 1970, como a formação de pessoal especializado e a própria instalação do LNA, antigo OAB. E já que essa instituição foi a responsável por alavancar a pesquisa astronômica no Brasil (10),  produzindo grande quantidade de dados para inúmeros trabalhos científicos de nível internacional, que permitiram a formação de mestres e doutores dentro e fora do ON, pode-se dizer que isso ocorreu graças, em grande parte, ao homem da lua.

(2) Em algumas fontes encontramos seu nome redigido com “da”, em outras, sem. Optamos pela grafia que aparece nos documentos do ON. Esse critério serve para os outros nomes próprios com grafia variada, inclusive os estrangeiros.
(3) Fundo Lélio Gama do Arquivo de História da Ciência do MAST, LG.T.01/006, dossiê 0198/2.
(4) Ibid., dossiê 0210/1.
(5) Os professores Delhaye e Cayrel fizeram parte da Comissão Rösch para escolha de sítio do OAB, como veremos mais adiante.
(6) Fundo Lélio Gama do Arquivo de História da Ciência do MAST, LG.T.01/006, dossiê 0198/3-0203/4.
(7) Ibid., dossiê 0202/1, p. 8.
(8) Documentos esses que estão depositados no Fundo ON do Arquivo de História da Ciência do MAST.
(9) Fundo ON do Arquivo de História da Ciência do MAST, caixa 5 (astronomia), dossiê “Projeto sobre o desenvolvimento da Astronomia no Brasil/convênio 146/CT” (Barreto, 1976, p. 2-30).
(10) Cf. Godoy, 2010; Damineli, 2009; Steiner, 2009; Maciel, 1996.

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